Saturday, October 04, 2008

A crise, o estado, o mercado e sectarismos - Blog do Reinaldo Azevedo - 03/10/08

A crise financeira global abriu as portas para o besteirol. Um leitor manda uma questão interessante. Leiam. Volto depois:

Sou assíduo leitor deste blog e confesso que o grau de concordância com suas opiniões gira em torno de 50%. Desta forma gostaria que você comentasse o texto reproduzido abaixo, extraído do livro Globalização e Socialismo, de Osvaldo Coggiola e outros autores, lançado em abril de 1977:
“A tendência ao socialismo é particularmente perceptível em períodos de crise, quando as companhias e os bancos falidos são resgatados através da sua estatização. Nessas circunstâncias, todos os princípios da economia de mercado se tornam vulneráveis e o conjunto da sociedade financia a reconstituição dos capitais atingidos pela depressão."
Luiz A. Marcolin Conceição

Comento
Caro Luiz, quando falei em "besteirol", não me referia a você, mas a essa leitura de que as medidas adotadas para conter a crise financeira têm, quando menos, parentesco com o chamado “socialismo”. O texto a que você se refere, de 1977, evidencia que a bobagem não é nova. Só isso.

Comecemos pela autoria. Osvaldo Coggiola é um professor de história alinhado com o trotskismo. Se ainda não se aposentou, não pesquisei, é professor da Universidade de São Paulo, onde há mais socialistas do que em Pequim — afinal, em Pequim, as pessoas se ocupam de enriquecer, de ganhar dinheiro, você sabe... A informação é importante porque as esquerdas socialistas nunca admitiram que foram derrotadas pela história e que o modelo de economia planificada que defendem naufragou. O livro, que não conheço, conforme corrigiu um leitor, é de 1997, não 1977. Pior ainda. Há mais de 30 anos, o professor teria ao menos uma desculpa: ainda não se sonhava com o fim da União Soviética, e Coggiola alimentava um sonho duplo: a) a viabilidade do socialismo; b) a viabilidade de um socialismo não-stalinista. Sonho duplamente frustrado.

Já dá para saber que a crise que aí está é a maior desde a dos anos 1930. Se, agora, pode-se dizer que os governos demoraram para agir, há quase oito décadas, demorou-se muito mais, daí os seus efeitos dramáticos, inclusive na política. A grande depressão mundial foi fermento de regimes totalitários na Europa, por exemplo, e reforçou, na intelectualidade ocidental, a suposição de que o horror comunista poderia mesmo ser uma modelo alternativo.

Agora, o estado age bem mais cedo, não é? Mas você está atento e certamente pode me indagar: “Nem tão cedo, não é, Reinaldo? Ou não teria havido a crise”. A questão tem uma lógica apenas aparente porque descolada da história. Um mercado “excessivamente regulado” — e ninguém sabe quão regulado —, sob permanente ingerência estatal, teria produzido a fantástica riqueza das últimas, sei lá, duas décadas? Quer dizer que esse modelo, de que se anuncia agora a “falência”, deixou atrás de si apenas destruição, desordem e inadimplência? Ora, isso é uma mentira escandalosa. Boa parte do capital que financiou pesquisas, inovações tecnológicas e, sim, casas foi gerado por isso que chamam “especulação” — e note que, nessas horas, chama-se “especulação” nada menos do que o funcionamento do mercado.

Sim, é verdade: o socialismo não conhecia essas crises — elas são próprias do capitalismo. Como aquele modelo não tinha mercado para acusar o desequilíbrio, quando este veio para valer, liquidou o modelo. Pode parecer estranho, mas a crise, Luiz, acaba sendo uma parte do próprio jogo: ajusta o modelo e corrige falhas. Até a próxima síndrome. O regime de mercado não é o da paz perpétua. Este era o socialista, com os resultados conhecidos.

O que vai acontecer agora? Haverá um período de excesso de regulação, muito mais, certamente, do que seria o necessário, porque se vai legislar sob o peso do susto, do pânico. Até que, sei lá, se passe uma década e se perceba que é preciso voltar a correr riscos; que os riscos também são virtuosos e geram riquezas. E se fará, então, a opção da desregulação. Até a crise seguinte.

No ano 2100, haverá economistas a lembrar — e alguns críticos lastimando — que o livre mercado precisara de uma correção do estado naqueles primitivos anos 1930, 2008, 2050... E em nenhum dos casos terá havido qualquer flerte com estatismo, socialismo ou bobagem congênere. É que o estado existe e deve existir para isto mesmo: não atrapalhar os indivíduos nos tempos virtuosos e intervir quando as regras do jogo não bastam para garantir a continuidade do... jogo!

Afinal, Luiz, “nós” sustentamos o estado. E ele deve servir para alguma coisa, não é?, além de tolher a nossa liberdade e encher o nosso saco.

Sei que há alguns a defender, em nome do que chamam de “fundamentos” do liberalismo, o “deixa quebrar”. Será isso mesmo liberalismo? Eu não tenho nenhuma saudade intelectual (já que nasci em 1961) dos efeitos políticos da quebradeira de 1930. Tampouco gostaria de ver o país que ainda é o maior fiador da democracia ocidental mergulhado na depressão.

Coggiola certamente cobraria de “nós”, os liberais, o mesmo que defendem os mal chamados “fundamentalistas” (*): “Deixa quebrar”. Sua utopia, num mundo convulsionado, em depressão, lhe pareceria mais próxima...

(*) Escrevo “mal chamados fundamentalistas” porque um “fundamentalista” tem de recorrer ao fundamento. E o fundamento principal é fazer funcionar a economia de mercado. Defender, pois, a quebradeira geral em nome do suposto fundamento é só uma estupidez sectária.
Post alterado às 17h41


Por Reinaldo Azevedo

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