Friday, October 10, 2008

As garridas e pequeninas coisas que saem do cérebro de Saramago. Ou: Ensaio sobre um cego - Blog do Reinaldo Azevedo - 09/10/08

O amigo Nelson Motta me manda, com alguns comentários inteligentes e engraçados, como sempre, um texto de José Saramago, o laureado e nobelado escritor português, ainda comunista, um verdadeiro especialista em cegueira. O homem tem um blog. O seu “sítio” é um verdadeiro viveiro de idéias jurássicas sobre política e economia. Ele gostou tanto de seu mais recente post e considerou o texto tão contundente, que resolveu suspender a produção por um dia para medir o impacto da sua provocação — só se é de esquerda depois dos vinte e poucos por falta de autocrítica, né? Vamos ver o que o mais universal dos escritores de nossa língua, depois de Camões (rá, rá, rá), produziu para assombrar o debate ideológico. Ele em vermelho; eu em azul.

Onde está a esquerda?

Vai para três ou quatro anos, numa entrevista a um jornal sul-americano, creio que argentino, saiu-me na sucessão das perguntas e respostas uma declaração que depois imaginei iria causar agitação, debate, escândalo (a este ponto chegava a minha ingenuidade), começando pelas hostes locais da esquerda e logo, quem sabe, como uma onda que em círculos se expandisse, nos meios internacionais, fossem eles políticos, sindicais ou culturais que da dita esquerda são tributários. Em toda a sua crueza, não recuando perante a própria obscenidade, a frase, pontualmente reproduzida pelo jornal, foi a seguinte: “A esquerda não tem nem uma puta ideia do mundo em que vive”. À minha intenção, deliberadamente provocadora, a esquerda, assim interpelada, respondeu com o mais gélido dos silêncios. Nenhum partido comunista, por exemplo, a principiar por aquele de que sou membro, saiu à estacada para rebater ou simplesmente argumentar sobre a propriedade ou a falta de propriedade das palavras que proferi. Por maioria de razão, também nenhum dos partidos socialistas que se encontram no governo dos seus respectivos países, penso, sobretudo, nos de Portugal e Espanha, considerou necessário exigir uma aclaração ao atrevido escritor que tinha ousado lançar uma pedra ao putrefacto charco da indiferença. Nada de nada, silêncio total, como se nos túmulos ideológicos onde se refugiaram nada mais houvesse que pó e aranhas, quando muito um osso arcaico que já nem para relíquia servia. Durante alguns dias senti-me excluído da sociedade humana como se fosse um pestífero, vítima de uma espécie de cirrose mental que já não dissesse coisa com coisa. Cheguei até a pensar que a frase compassiva que andaria circulando entre os que assim calavam seria mais ou menos esta: “Coitado, que se poderia esperar com aquela idade?” Estava claro que não me achavam opinante à altura.
Como é? Saramago se sentiu excluído porque, esquerdista que é, resolveu fazer uma crítica às esquerdas? Mas excluído por quem, santo Deus? Até porque é bom que se contextualizem as críticas do valente. Saramago não é do tipo que ataca a esquerda que ainda se apega a dogmas, a velharias. O caso é bem outro: ele é crítico justamente da falta de dogmatismo. Querem ver?

Em 2004, ele concedeu uma entrevista à BBC Brasil. Vejam o que disse sobre o Apedeuta: “Aplaudi, apoiei, todos nós aplaudimos e festejamos a vitória (de Lula). Mas, neste momento, sou bastante crítico, sobretudo com a política econômica, com esse acordo com o FMI que ele aceitou e que tinha uma condição fundamental que é o pagamento da dívida externa. Se isso se converte em prioridade, é claro que os problemas sociais vão ser postos em segundo plano".

Viram só? Quem, senão um comunista, atacaria uma das poucas virtudes de Lula? Quando Saramago fala de pó, aranhas, túmulos ideológicos, não pensem que ele considera “velhos” os postulados da tal luta antiimperialista e bobajadas congêneres. Nada disso! Ele continua querendo uma resposta “comunista” e alternativa à sociedade de mercado. Ele queria ver Lula dando calote. Continuemos.

O tempo foi passando, passando, a situação do mundo complicando-se cada vez mais, e a esquerda, impávida, continuava a desempenhar os papéis que, no poder ou na oposição, lhes haviam sido distribuídos. Eu, que entretanto tinha feito outra descoberta, a de que Marx nunca havia tido tanta razão como hoje, imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso. Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: “Onde está a esquerda?” Não dou alvíssaras, já paguei demasiado caras as minhas ilusões.
O que, senão a cegueira ideológica, leva alguém a dizer que “Marx nunca havia tido tanta razão como hoje”? Ademais, ele fica nos devendo — ficaria se alguém desse bola; Nelson e eu estamos lhe dando um colher de chá — um post em que explique por que Marx sempre esteve certo.

Olhem lá Saramago cobrando que a esquerda reaja à “burla cancerosa das hipotecas”. O que será que ele espera? Aliás, fosse leitor mais atento e olhasse menos para o próprio umbigo, teria percebido que as esquerdas reagem, sim: aplaudem o que chamam “estatização” do sistema financeiro (como se isso lhes desse razão teórica) e, ao mesmo tempo, ironizam os liberais: “Ah, viram só? Agora vocês chamam o estado”. Quando o que está sendo “estatizado” agora for, mais adiante, devolvido ao mercado, elas protestarão. Esquerdista, em país civilizado, serve pra isso: pra aplaudir e pra vaiar.

Aí ele pergunta “onde está a esquerda”. Respondo pro cegueta:
- está fazendo prisões arbitrárias na Venezuela e matando a democracia;
- está promovendo guerra civil na Bolívia e conduzindo o país a uma crise econômica brutal;
- está calando opositores no Equador;
- mantém campos de concentração na Colômbia;
- promove mensalões e conspiratas vagabundas no Brasil – além, claro, de ter criado uma máquina pra o enriquecimento ilícito de seus heróis;
- mantém um regime de tirania supostamente virtuosa na China;
- mantém um regime de tirania da fome na Coréia do Norte.
- lidera um dos governos mais corruptos do mundo em Angola;
- faz Guantánamo, em Cuba, parecer um paraíso na comparação com o pedaço da ilha que não é... Guantánamo!

Presenteio Saramago com a tirada monumental do jovem Antero de Quental para Castilho, o então velho poeta e intendente das letras portuguesas:


“Levanto-me quando os cabelos brancos de V. Exa. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas coisas que saem dele confesso, não me merecem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V.Exa. precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão. É por estes motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de V.Exa. nem admirador nem respeitador”


Por Reinaldo Azevedo

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