Wednesday, May 28, 2008

A questão fundiária em números - Por Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na UFRGS. - http://www.pep-home.blogspot.com/ de 27/05/08

No emaranhado do debate político atual sobre as questões fundiárias, fica muitas vezes difícil discernir o que está verdadeiramente em jogo, tal é o afã de alguns em ocultar a realidade. A percepção, de tão afastada desta, pode vir a fabular um mundo em que o País seria um imenso latifúndio, ocupado por proprietários inescrupulosos.
Cria-se, assim, um novo mundo particularmente propício à fragilização da propriedade privada, onde os títulos não valem mais e a própria Constituição é rasgada.
Alguns poucos, com projetos políticos próprios, travestidos da bandeira de uma suposta "justiça social", se arvoram em intérpretes da Lei Maior, como se o Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal não devessem ser respeitados. Assim, a propriedade entra num ciclo perverso de relativização, no qual questões indígenas, sociais e outras ganham a cena principal. Elas são freqüentemente instrumentalizadas por ditos movimentos sociais, verdadeiras organizações políticas que têm como objetivo banir a economia de mercado e o Estado de Direito.
Vejamos os números da distribuição agrária brasileira, referentes a 2007. As culturas temporárias, de ciclo anual - feijão, milho, soja, trigo, arroz e algodão, por exemplo -, ocupam 55 milhões de hectares, perfazendo 6,4% do total. As culturas permanentes, de ciclo mais longo - café, cítricos e frutíferos -, 17 milhões de hectares, 2% do total. As florestas plantadas constituem 5 milhões de hectares, 0,6%. As três, juntas, somam 77 milhões de hectares, ou seja, 9% do total.
Os assentamentos rurais, por sua vez, perfazem sozinhos - repito: sozinhos! - 77 milhões de hectares, ou seja, os mesmos 9% do total. A coincidência parece cabalística, mas é a pura realidade. Atentem para o fato central: os assentamentos equivalem a toda a área de culturas temporárias, permanentes e de florestas, no Brasil. E, no entanto, estas são objeto de invasões constantes, como se o País devesse tornar-se um grande assentamento.
A propriedade privada rural, pequena, média e grande, produz a cesta básica do brasileiro, sendo a fonte de fatia expressiva das exportações brasileiras, gerando o superávit da balança comercial e, sobretudo, empregos, salário, renda e investimentos. Ela se constitui num dos setores mais dinâmicos da economia nacional e, contudo, é objeto de questionamentos constantes, vivendo de insegurança jurídica, como se fosse a responsável por todos os males do campo brasileiro, como se aquilo que comêssemos não fosse objeto do seu trabalho.
Os assentamentos, por sua vez, são de produtividade desconhecida, estudiosos não podem ir lá dentro fazer uma pesquisa isenta, o controle político é total e se encontram numa situação de dependência do governo. Vivem de cestas básicas e não são emancipados - e a emancipação é o que poderia tornar os assentados verdadeiros proprietários, senhores do seu nariz, comprando e vendendo, sem se subordinarem a organizações políticas que os controlam e dizem representá-los. Recursos públicos significativos são canalizados para esses assentamentos e para a reprodução financeira dessas organizações políticas ditas movimentos sociais. Todos vivem do dinheiro do contribuinte!
Vejam a questão das florestas plantadas, fundamentalmente eucaliptos e pinus. Elas correspondem a meros 0,6%, 5 milhões de hectares, e são, todavia, apresentadas como as grandes vilãs do meio ambiente, sendo destruídas, em invasões, com requintes de violência. Os produtos florestais respondem por 15,1% das exportações do agronegócio, ocupando a terceira posição depois do complexo soja e das carnes. A produtividade e o ganho nacional são imensos num setor que se deve defender de invasões que ameaçam a sua existência. Se quiséssemos, ainda, fazer outra comparação, assinalaríamos que as áreas de conservação federal e estaduais ocupam 176 milhões de hectares, isto é, 20,7% do total.
Tornou-se moda dizer que as áreas indígenas são insuficientes, havendo movimentos para ampliá-las constantemente, como se o limite fosse todo o território nacional. Atualmente, elas ocupam 107 milhões de hectares, mais, portanto, do que toda a área de lavouras temporárias, permanentes e de florestas. Sozinhas, elas englobam boa parte do território, equivalente a vários países europeus juntos, para uma pequena população. Dizer que os indígenas não possuem territórios suficientes é um evidente contra-senso, a não ser que o projeto político em questão consista em não considerá-los brasileiros, formando diferentes "nações" que se contraporiam à Nação brasileira. Em todo caso, já teriam uma imensa área. Faltaria somente a demarcação contínua!
Para se ter uma idéia mais precisa do que esta área significa, todas as áreas de pastagem, que respondem pela carne brasileira, principalmente bovina, correspondem a 172 milhões de hectares, 20,2 % do total. De lá provêm as carnes, itens essenciais da alimentação dos brasileiros. Na pauta do agronegócio, as carnes ocupam a segunda posição, com 19,3% do total exportado. Terras do governo e de outros usos, por sua vez, constituem 171 milhões de hectares, isto é, 20,1% do total. Praticamente se equivalem, com a diferença de que ao agronegócio, no caso, a pecuária, seria atribuída a responsabilidade de todos os males da sociedade brasileira!
A despeito do que tem sido dito, a extrema competitividade do agronegócio não se deve ao aumento significativo das terras plantadas e cultivadas, mas a um aumento estupendo da produtividade, graças à pesquisa e à incorporação de novas tecnologias. Por exemplo, a área de grãos cresceu 21%, alcançando 46,7 milhões de hectares, de 1991-1992 a 2007-2008, enquanto a produtividade, no mesmo período, foi de 104%. Eis os números que correspondem à realidade e, se mais bem conhecidos, fariam os cidadãos brasileiros se tornarem mais imunes aos cantos de sereia dos que querem supostamente abolir o latifúndio. Aliás, qual?

Monday, May 26, 2008

1964, 1968, 2008 e uma fala de Franklin Martins - Blog do Reinaldo Azevedo - 26/05/2008

A revista dominical do Correio Braziliense fez neste domingo matéria especial sobre o 1968, o ano que não acaba nunca... de encher o nosso saco! Ah, sim, crianças: a minha paciência com isso é bem pequenininha. Até porque só pode se encantar com a essência daquele movimento — que ganhou forma mais aparentemente universal na França — quem não leu as Memórias, de Raymond Aron. Em trechos contundentes, ele narra a estupidez obscurantista daqueles “jovens revolucionários”. O salto tecnológico a que o mundo assistiu nos últimos 40 anos — especialmente do fim dos anos 70 para cá — têm relação direta com o espírito anti-68. Vale dizer: foi fruto da revolução econômica que os caudatários daquele libertarismo chamam de “neoliberal”. Ronald Reagan foi muito mais importante para a humanidade — e para a causa da liberdade —do que Jean-Paul Sartre e sua cara “de terreno baldio” (segundo o próprio em suas memórias precoces). Mas vá tentar dizer isso...

Adiante. Um dos entrevistados na reportagem especial foi Franklin Martins, ex-militante do MR-8 e um dos seqüestradores do embaixador americano Charles Burke Elbrick, trocado, em 1969, por 13 presos políticos. Num dado momento, afirma o agora ministro da Comunicação Social: “É melhor ser herdeiro de 68 do que de 64. Ter uma ditadura é muito pior do que ser herdeiro de um movimento que atingiu ou não resultados. O erro é querer reduzir 1968 a uma coisa só.”

Concordo ou desanco? Desanco, mas concordo com uma parte: “O erro é querer reduzir 1968 a uma coisa só”. Isso é verdade. Havia certamente aqueles que queriam o fim da ditadura e a democracia. Não é o caso de Franklin Martins. Membro do MR-8, grupo que aderiu ao terrorismo, ele estava entre aqueles — a exemplo de Dilma Rousseff e Carlos Minc — que lutavam para instituir uma ditadura no Brasil. Repito aqui o que escrevi no dia 29 de agosto do ano passado: “A democracia no Brasil não morreu em 1964 porque a direita deu um golpe. Morreu porque não havia quem a defendesse, de lado nenhum. Um governante responsável não teria promovido, ele próprio, a subversão, como fez João Goulart, incentivado pelos nacionalistas bocós e pelos bolcheviques tupiniquis, que imaginavam que ele pudesse ser o seu Kerensky. Não podia. Era ainda mais idiota.”
A fala de Franklin Martins remete à velha mitologia de que “a turma de 1968”, inclsuive os que recorreram ao terrorismo, queriam um país democrático, daí ele considerar que é “melhor ser herdeiro de 68 do que de 64”. Depende! Membro que era do MR-8, Franklin, então, era um stalinista. Digamos que os “herdeiros de 64” carregassem 424 mortos nas costas. Os de 68 levam os 35 milhões de Stálin. Mas essa é uma conta macabra, né? Franklin poderia se orgulhar, então, de, em 1968, ter sido um democrata, enquanto o pessoal que fez 1964 optou pela ditadura. Foi?

Faz mais de um ano, instituí aqui um prêmio para quem localizasse um texto, um que fosse, dos grandes teóricos de esquerda ou das organizações esquerdistas brasileiras pré e pós-68 que defendesse a democracia. É evidente que nunca ninguém apresentou coisa nenhuma. E nem vai. Quem chegou mais perto, só no fim dos anos 70, foi o gramsciano Carlos Nelson Coutinho, segundo quem a democracia era uma questão fundamental para a construção do... socialismo!!! “Socialismo com democracia” é coisa mais complicada do que a quadratura do círculo. Será que apenas o Brasil operaria esse milagre? É... Só a gente teve Pelé...

Essa questão tem alguma relevância hoje em dia? Tem, sim. Segundo matéria há tempos publicada pelo Estadão e jamais desmentida, no marco zero do dossiê, está uma reunião da qual participaram os ex-“meiaoito” Franklin e Dilma Rousseff. Assim como eles acharam, no passado, que a conjuntura e a ideologia justificavam ações terroristas, acham, no presente, que sua suposta superioridade moral os autoriza a adotar procedimentos que enxovalham o estado de direito. Afinal, eles têm uma causa, não é?

E foi o mito da “resistência” que levou Dilma, em cujo gabinete se fez um dossiê que desmoraliza a democracia, a fazer o famoso discurso no Senado em resposta ao senador Agripino Maia. Afinal, esse pessoal acha preferível ser herdeiro intelectual de uma ditadura que matou muitos milhões a ser herdeiro de um outra que matou poucas centenas.

Para uma pessoa de caráter, basta uma única morte para que soem os sinos.


Por Reinaldo Azevedo

Friday, May 23, 2008

E o nosso congresso fica mais podre

Do Plano Real ao surreal? - Do site www.e-agora.org.br

Dionísio Dias Carneiro, O Estado de S. Paulo (23/05/08)

O Plano Real entra no seu 15º ano. Já é história. Os atuais estudantes de macroeconomia, hoje com 20 anos, conheceram a superinflação brasileira pelos livros. De eventuais histórias familiares podem conhecer lendas urbanas em torno das inúmeras batalhas dirigidas para os sintomas de aumentos generalizados de preços: as tabelas da Sunab para combater a vilania impatriótica dos açambarcadores que provocavam inflação, as proibições das exportações "para proteger o consumidor brasileiro" e a institucionalização dos controles de preços por um Conselho de Ministros. Podem ouvir falar das tentativas de soluções que envolveram congelamentos generalizados de preços: das máquinas de remarcação, contra as quais ficavam a postos os fiscais do Sarney; o combate direto à alta de preços de produtos essenciais, frustrado pela incapacidade de encher prateleiras vazias; as corridas patrióticas para laçar bois no pasto; e a criminalização dos supermercados.

Mas, para os que viveram as frustrações de uma geração, os pesadelos não parecem tão distantes. Os jornais registram uma frase de Lula sobre o mal da inflação que dá arrepios: "A culpa é tanto do comprador quanto do vendedor." Não, presidente, a inflação não ocorre no momento em que o preço é aumentado. Ela nasce das ações do governo que ignoram os limites da economia.

Não precisamos buscar exemplos no nosso passado: basta olhar para o Sul e ver o que tem feito a dinastia Kirchner; para o Norte, e examinar a mobilização patriótica e inflacionária do socialismo bolivariano; para o Sudoeste, o novo governo paraguaio do bispo "progressista" que atribui ao Brasil as infelicidades de seu povo; para o Oeste, há esforços ingentes do companheiro Morales que investe contra a Petrobrás, mas não consegue investir no futuro da Bolívia e aumentar a produção.

Os jovens economistas treinados na era da grande moderação (e grande confiança no poder dos bancos centrais) podem ter dificuldade em entender de que forma governos desorganizam as economias pela via da acomodação inflacionária, da mesma forma que os de minha geração do pós-guerra não entendiam como se gerava uma grande depressão.

A grande desesperança causada pela alta inflação nos anos 80 e 90 frustrou o crescimento pretendido pelos militares. A posteriori, parece difícil entender o caminho da insensatez que os governos podem construir com um desfiar de boas intenções.

Nas últimas semanas, essas boas intenções atingiram uma apoteose. Não pelo bom humor que despertaram o ministro da Fazenda, exibindo seu cofrinho vazio, e o novo ministro do Meio Ambiente, mas pelos anúncios de políticas com estímulos conhecidos e pouco eficazes. Gostaria de poder comemorar o "farol alto", como pregava Otto Lara Rezende, mas o conjunto de propostas lembra, aos que vivenciaram os 20 anos de inflação elevada e desorganização econômica, os erros na percepção das restrições ao crescimento econômico brasileiro. Muitos dos mesmos personagens que consideraram o Plano Real um golpe político que ruiria tal qual um castelo de cartas, hoje aplaudem um verdadeiro "Plano Irreal", que pretende providenciar maior crescimento sem maior poupança interna, despesa pública crescente com inflação acelerada, abuso de impostos que distorcem os preços relativos, poucas ações para aumentar a produtividade, tudo coroado por chavões que reciclam as boas intenções do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento dos anos 70.

É surreal o conjunto de propostas, por não se apoiar em diagnóstico macroeconômico coerente. Do conjunto, percebe-se a preocupação com "a nossa querida demanda", quando se trata de expandir "nossa almejada oferta". Depois de optar pela tolerância com a inflação, há um ano atrás, a Fazenda oferece seus préstimos para, em plena aceleração inflacionária, manter o ritmo insensato do crescimento do crédito para não desestimular os investimentos.

A estagflação mundial, de que tratamos em artigo de 26/10/2007 neste espaço, é hoje o diagnóstico corrente. O ambiente externo é mais obscuro e, assim, a falta de percepção de que o mundo entra em recessão com inflação crescente. Os preços externos estão favoráveis graças ao efeito China. Mas sem maior poupança interna o balanço de pagamentos se torna frágil. A demora na percepção da realidade pode custar caro ao presidente, que terá de explicar aos seus eleitores por que mesmo o poder de compra dos trabalhadores caiu, apesar da alta confiança dos investidores quanto ao futuro da economia brasileira.

Dionísio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do Iepe/CdG

Exclusivo: FHC critica mesquinharia e propõe grande debate nacional a Lula - Do site www.e-agora.org.br

Fernando Henrique Cardoso, entrevista a Ricardo Kotscho, IG: Último Segundo (18/05/08)
18/05 - 08:38 -
Ricardo Kotscho“Parece eu... A minha situação hoje também é essa”, brinca o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao ler as primeiras linhas do subtítulo do meu livro "Uma Vida Nova e Feliz", que lhe trouxe de presente, onde está escrito: “...sem poder, sem cargo, sem carteira assinada, sem crachá...”Afável como de costume e mais tranqüilo do que nunca, FHC estava sentado numa moderna poltrona igualzinha à do presidente da República no Palácio do Planalto. Conversamos sem pressa no final de tarde da última terça-feira, em seu confortável gabinete no sexto andar de um prédio bem antigo que dá vista para o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, onde está instalado o Instituto Fernando Henrique Cardoso, seu atual local de trabalho.Começamos falando da sua rotina de vida depois que deixou a Presidência da República, há mais de cinco anos - “a vida de ex-presidente é melhor do que a de presidente” -, da família, das palestras e dos livros, das muitas viagens pelo Brasil e ao exterior, do que ele mais sente falta dos seus tempos de poder.Aos poucos, entramos nos assuntos políticos. FHC falou com franqueza sobre acertos e erros dos seus oito anos de mandato. Alternou críticas com elogios ao governo do presidente Lula. Analisou os cenários para as próximas eleições municipais e para a sucessão presidencial em 2010, as relações entre mídia e política, e entre PT e PSDB. Previu que a CPI dos Cartões Corporativos não vai dar em nada. E se queixou que o presidente Lula nunca lhe fez um gesto para abrir o diálogo com o PSDB, depois de uma transição das mais civilizadas.Só no final da entrevista, quando lhe perguntei o que diria ao presidente Lula, se o encontrasse naquele dia, sobre o episódio do vazamento de despesas sigilosas do seu governo, FHC levantou o tom de voz para mostrar sua indignação, mas em seguida propôs um grande debate nacional para discutir os rumos do País e mostrou-se disposto a participar dele.O principal trecho da entrevista com o que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso gostaria de dizer ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva:“Será que você não está vendo o que está acontecendo? Você acha que tem cabimento nós chegarmos a esse grau de mesquinharia, dadas às relações que nós sempre tivemos, que sempre foram boas? Lula, você não acha que chegou o momento de pensar maior? O Brasil está indo para um outro patamar e a política está indo para o buraco. Não dá para a gente pensar grande? Não dá para haver um debate sobre temas importantes - o que vamos fazer com essa riqueza petrolífera que está aí, por exemplo? Eu estou disposto a entrar nesse debate, esse seria um grande debate nacional, sim. Nós estamos apequenando a política”.
A seguir, a íntegra da nossa conversa, que durou pouco mais de uma hora:
IG: O que é melhor: a vida de presidente da República ou a de ex- presidente da República?FHC: Sem dúvida, a vida de ex-presidente. Porque você tem a recordação da Presidência e, como toda memória, você vai selecionando... Você guarda o que foi agradável, o que deu certo... E vai esquecendo o que não funcionou...
IG: É a memória seletiva...
FHC: É isso, memória seletiva. A vida de ex-presidente, pelo menos no Brasil, é uma vida agradável. A população brasileira é muito cordata. Eu deixei a Presidência já há quase seis anos e trabalho aqui hoje muito tranqüilo, sem me preocupar com segurança, por exemplo...
IG: Foi isso que eu reparei quando cheguei. Na portaria do prédio ninguém me pediu documentos, subi direto, sem crachá...
FHC: Nada, nada... Não existe isso aqui. Mesmo quando eu saio a pé com a Ruth, vou a algum restaurante lá perto de casa, vou ao cinema, não tenho nenhuma preocupação com segurança, embora oficialmente eu tenha direito como ex-presidente. Então eu uso mais como motorista e, eventualmente, quando eu vou viajar, para me ajudar. Mas eu não tenho essa preocupação porque não precisa. Desde que eu saí da Presidência, só vi gestos de simpatia. Até porque aqueles que não são simpáticos a mim são educados o suficiente para não se manifestar. Quando você está na Presidência, não, é diferente, quem é contra você se manifesta... Então a vida de ex-presidente, deste ponto de vista, é uma vida tranqüila. Não vou dizer que a de presidente também não seja boa. São momentos diferentes da sua vida, da história. Eu nunca neguei que exerci a Presidência com energia e com satisfação, com prazer, mas eu acho que a vida de ex-presidente é melhor. E sou apenas um ex-presidente. Fiz questão de não ser candidato a mais nada, não é?
IG: Não tem queixa da vida?
FHC: Não tenho queixa da vida!
IG: Como é a rotina do ex-presidente FHC quando está em São Paulo? O que mais gosta de fazer? Dá tempo de pegar os netos na escola?
FHC: Eu tenho cinco netos, mas já estão todos grandinhos e nenhum mora em São Paulo. Quatro moram no Rio e um em Brasília, que é a mais moça, tem 13 anos. Os meus netos vêm com muita freqüência a São Paulo. Gosto de jogar cartas com o meu neto de 14 anos. Jogo buraco com ele, com os amigos dele. Isso a gente faz com muita satisfação. Outro dia eu e Ruth nos encontramos com a neta que tem 18 anos e está na Inglaterra. Nós estávamos na Espanha, ela foi nos encontrar para passar uns dias conosco, sair para jantar, essas coisas todas. A minha rotina aqui em São Paulo é a rotina de um acadêmico, um professor aposentado. Eu fico em casa de manhã, quando posso sempre eu fico em casa.
IG: No apartamento em Higienópolis...
FHC: Isso... Sempre morei ali e continuo lá. E lá eu leio, escrevo, fico em casa de manhã; de tarde, geralmente eu venho para cá. Aqui, o que eu faço? Eu recebo pessoas que vêm me procurar para conversar, ou então participo de seminários, que há muitos aqui, ou discuto com o pessoal do instituto sobre os trabalhos que eu estou fazendo, pesquisas e tal...
IG: Quantas pessoas trabalham aqui com o senhor ?
FHC: Aqui no Instituto deve ter umas 20 pessoas, mas a maior parte é para tratar da documentação do meu período de governo.
IG: Encontrei aqui o Sergio Fausto (assessor de FHC), que não via há muito tempo...
FHC: Sergio Fausto trabalha diretamente comigo, ele é uma espécie de chefe de gabinete. É o nosso diretor de toda a atividade referente a projetos e seminários. A parte relativa à documentação é com a Daniele Adaion (assessora), que já trabalhava no Palácio do Planalto e está comigo desde os tempos do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). E tenho um assessor internacional, o diplomata Miguel de Oliveira, que é ministro do Itamarati. Fora isso tem uma porção de gente que trabalha aqui na parte de documentação, na parte dos arquivos. É isso que eu faço quando eu estou aqui no Brasil. À noite, vou para casa. Às vezes alguém vai jantar lá em casa ou eu vou jantar na casa de algum amigo. Vou muito a concertos, sou presidente da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), então vou muito aos concertos. Quando eu posso, vou ao cinema, a Ruth gosta muito de teatro também... Enfim, eu tenho uma vida normal, como sempre tivemos. Eu leio nos jornais que estou fazendo ativamente política e tal... Não é verdade. Eu converso, participo de discussões, mas eu não atuo no dia-a-dia da vida política, nem do PSDB.
IG: E não sente falta disso?
FHC: Olha, eu não sinto falta porque, quando eu quero, eu tenho espaço, né? E tenho também na mídia, quando eu quero tenho espaço. Não tenho do que me queixar. Não sinto falta daquela vida política diária porque nunca fui muito afeito a esse tipo de coisa, a esse tipo de vida. Eu sempre fui um pouco ambivalente, um pouco professor e acadêmico, um pouco atuando na área política.
IG: E como tem sido sua atividade durante as viagens aqui e no exterior? Sua principal atividade pública desde que deixou o governo são as palestras. Quantas por mês? Quais os temas mais freqüentes? O senhor se acha bem remunerado? Ainda dá aulas? Está escrevendo algum livro? FHC: Vamos por partes. Durante cinco anos dei aulas nos Estados Unidos, na Universidade de Brown, no Instituto de Relações Internacionais. Eu sou o que eles chamam lá de “professor of life”, que significa o seguinte: tenho uma função fixa, mas eu dou as aulas que eu quero, umas conferências, recebo estudantes. Algumas vezes ia dar aula no curso normal mesmo, dava Sociologia, dava Desenvolvimento Econômico, História da América Latina. Ficava por lá 40 dias por ano. Este ano parei, não renovei o contrato. Agora sou do Conselho de Direção do Instituto, vou lá apenas uma vez por ano. E aí faço um seminário, mas não é regular. Fora isso, recebo uma vez por mês aqui nesse Instituto alunos de escolas públicas e privadas que estão no último ano do ciclo secundário. São uns 50, 60 estudantes que vêm aqui de cada vez, visitam o Instituto, assistem a um vídeo que mostra o que tem lá embaixo, o setor de documentação e tal, e aí eles vão conversar comigo. Sobre o quê? Eles propõem o tema. A última que veio aqui foi uma Escola Técnica da Penha, escola pública, os alunos queriam que eu falasse sobre as metrópoles e a urbanização. Outros querem discutir o sistema eleitoral ou como é que funciona a relação do Executivo com o Legislativo. Enfim, é variado...
IG: É como se fosse uma entrevista coletiva...
FHC: É como uma entrevista. Dou uma aula sobre o tema, falo uns 40 minutos e depois fica aberto para perguntas. Isso leva umas duas horas e é muito interessante. Agora não converso de política com eles...
IG: O senhor não fala de política?
FHC: Não, nada de política partidária. Eles sempre perguntam, mas eu procuro me esquivar porque não é bom misturar os papéis. Fora isso, eu faço palestras, e que tipo de palestras? Geralmente as faculdades e universidades propõem discussões em termos mais econômicos, empresarias, a situação do Brasil. Às vezes, elas são remuneradas, e bem remuneradas. Eu tenho um agente aqui e um outro no exterior, que é o mesmo do Clinton (Bill Clinton, ex-presidente dos EUA). Agora estou reduzindo bastante isso. Palestra remunerada eu faço no máximo uma vez por mês porque cansa. Viajar é muito cansativo. Muitas vezes eu viajo e faço palestra de graça também. São seminários, encontros na Universidade, aí eu não cobro ninguém. Mas quando é empresa, ou quando eles vão ganhar dinheiro com a sua palestra, aí tem que pagar!
IG: Isso aí virou uma grande indústria...
FHC: Virou uma grande indústria e, no meu caso, isso é bastante bem pago...
iG : E está preparando algum livro novo?
FHC: Eu escrevi três livros depois que deixei a Presidência da República. Um é A Arte da Política, que fez bastante sucesso, vendeu quase cem mil exemplares, é um livro grande. O outro é um livro para jovens que queiram se interessar por política, Cartas a um Jovem Político, e o terceiro chama-se The Accidental President of Brazil (O Presidente Acidental do Brasil), publicado em inglês só nos Estados Unidos. Fiz junto com um jornalista americano, mas que não sabia português. Não está traduzido porque, se traduzir, vai concorrer com o outro e também porque não é para um público brasileiro. Sempre estou escrevendo. Escrevi dois ensaios grandes e vou escrever mais um agora. Vou fazer um pequeno livro, uma espécie de revisão de um livro que escrevi faz muitos anos junto com o Milton Paletto, um chileno. Chama-se Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Eu escrevi em 1968, 40 anos atrás. Aliás, fiz um seminário recentemente em Brown sobre esse livro, que agora vai ser publicado lá também. Participaram umas 30 pessoas de várias universidades, discutindo o impacto que esse livro teve na época nos Estados Unidos. Escrevi um ensaio sobre como eu encararia agora a América Latina à luz da metodologia que eu usei neste livro. Como muitas pessoas de má fé disseram para esquecer tudo o que eu escrevi, esse ensaio mostra que continuo pensando as mesmas coisas. Apesar das mudanças no Brasil e na América Latina, o modo de analisar não mudou. Depois escrevi um outro ensaio que vai ser publicado agora no livro do Otávio Barros (escritor), que é um ensaio longo sobre a globalização. Vai se chamar Um Mundo Surpreendente, que é na verdade uma análise da globalização, para mostrar que, em primeiro lugar, isso é antigo; segundo, falo desta nova etapa, essa coisa toda da China, que põe em xeque inclusive as teorias sobre dependência e desenvolvimento. Por que as matérias primas e os produtos de alimentação subiram muito de preço, muito mais do que os industriais? No passado, era o contrário, então eu analiso como é que o Brasil se ajeitou neste novo mundo, se inseriu neste novo mundo. Aí eu mostro que a abertura da economia, a estabilização e tudo o que me criticavam foram o que deram certo. O Brasil está hoje aí com um grau de investimento que não teria nunca se nós não tivéssemos feito o que eu fiz, e mostro como é que houve isso. Apesar das dificuldades, o Brasil hoje conseguiu dar um salto muito grande porque nós entendemos o que era a globalização e não ficamos como avestruz com a cabeça na areia.
IG: Este livro sai quando?
FHC: Sai agora em maio. Estou escrevendo um outro ensaio sobre o que é a política social-democrata, a política social em países como o Brasil. Vou juntar esses três ensaios e publicar um livrinho. Quer dizer, escrevendo eu estou sempre, lendo e escrevendo. Isso não tem solução... Leio muitas coisas ao mesmo tempo.
IG: Nas suas viagens ao exterior, qual é a sua percepção da imagem atual que o Brasil tem lá fora? O que mudou nessa imagem em relação ao tempo que o senhor viajava como presidente da República?
FHC: Acho que se consolidou a imagem do Brasil. Quando eu era ministro de Relações Exteriores, antes de ser presidente da República, fui ao Chile uma vez e disse que o Brasil tinha potencialidades, que o Brasil estava crescendo, mas todo mundo olhava para mim com uma descrença imensa, por causa da inflação. Depois, quando fui ministro da Fazenda, era também uma imensa dificuldade, falavam que o Brasil primeiro tinha que colocar ordem na casa. Nós pusemos ordem na casa. Então, no meu segundo mandato, quando eu viajava, já havia um reconhecimento grande por parte do Clinton (Bill Clinton, ex-presidente dos EUA), do Tony Blair (ex-premiê britânico), do Chirac (Jacques Chirac, ex-premiê e ex-presidente francês). Era uma relação em que eles reconheciam tudo o que fizemos, não só eu, mas o Brasil. E isso só fez melhorar de lá para cá. O Brasil tem hoje uma imagem positiva.
IG: Passados quase cinco anos e meio, do que mais o senhor sente falta dos tempos que morava no Palácio da Alvorada e mandava no País? O que melhorou e o que piorou no Brasil de lá para cá?
FHC: Bom, o que eu mais sinto falta é da convivência com as pessoas que me ajudaram muito. Não só das que fizeram o Plano Real, mas depois, também, das pessoas que implementaram as reformas na educação, na saúde, do Vilmar Faria (amigo e assessor especial na área social), que teve um enorme papel na criação de uma rede de proteção social. De fato, do que sinto falta mesmo é das pessoas, não é de situações, embora eu sempre tenha gostado de viver no Palácio da Alvorada. Essas questões de moradia a gente sabe que são transitórias mesmo e uma pessoa como eu, que já morou em várias partes do mundo, não fica tão apegado assim. Sinto falta é disso, das pessoas, até mesmo dos jornalistas, aquele contato constante...
IG : E o que melhorou, o que piorou no Brasil de lá para cá ?
FHC: Melhorou a economia. Indiscutivelmente, nós estamos vivendo um momento bastante positivo, acho que houve avanços também nos programas sociais, que se estenderam mais.
IG: O que piorou?
FHC: Acho que toda a parte institucional. Talvez menos a Justiça, talvez até a Justiça tenha melhorado. O Supremo Tribunal Federal tem tomado posições boas, mais ativas. Acho que o Ministério Público também nunca deixou de progredir. Mas a relação do Legislativo com o Executivo piorou. Hoje, a gente não sente mais vitalidade no Legislativo e nem sente que o Executivo esteja empenhado num programa junto ao Legislativo para produzir uma mudança para o Brasil, reformas... Você sente propaganda, mas não sente rumo. Por outro lado, acho que a questão da corrupção também piorou. Sem julgar se é verdade ou falsa, quando você lê os jornais de hoje, qualquer jornal, a política virou polícia, virou página policial. Sempre houve uma certa tendência nessa direção, mas agora é avassalador. Eu sempre dizia no passado, tirando até emprestada uma frase do Werneck Viana, um cientista político do Rio de Janeiro, que dizia o seguinte: “PT e PSDB disputam entre si para saber quem é que comanda o atraso! Então tenho a impressão de que, em certos momentos, o atraso está nos comandando”.
IG: Melhor seria se eles disputassem para ver quem leva o Brasil para frente...
FHC: Para ver quem tira o País do atraso. Tirar do atraso, aliado com o atraso, não dá. No Congresso, tem muita gente atrasada. Os dois partidos que têm capacidade de tocar o Brasil para frente são esses dois, o PSDB e o PT. Mas tenho a sensação às vezes que o atraso está ganhando. Dá a sensação de que em vez do PT e do governo estarem liderando o processo, eles estão sendo puxados pelos fatos que vão acontecendo, que são fatos do passado, clientelismo, corrupção, uma visão arcaica. Não tudo, é claro, não quero ser exagerado na crítica, mas tenho essa sensação. Isso eu acho que vai mal, essa relação do Executivo com o Legislativo, a coisa da corrupção e a falta de governo, no sentido de eficiência de governo. A economia vai bem, a área social está avançando, mas falta isso. Falta um cimento, falta uma política que dê coesão ao País. Falam que as pessoas não se interessam mais por política porque vivem bem, estão felizes...
IG: Mas a vida dos brasileiros não melhorou mesmo?
FHC: Mais ou menos, porque tem áreas muito ruins, né? De qualquer maneira, não é aí que o calo aperta... É como se o País tivesse virado um grande mercado. E é até uma coisa paradoxal, o presidente Lula, que vem do outro lado, é hoje o arauto do mercado. O mercado é necessário, é importante, mas não pode ser tudo. Não pode ser só mercado e nem só o mercado dar o ritmo da vida.
IG: Como o senhor enfrentaria o problema da energia hoje? O Brasil tem de fato de escolher entre plantar para produzir energia e plantar para produzir alimento? Corremos o risco de um novo apagão?
FHC: O risco de um novo apagão existe porque o investimento na hidroeletricidade está baixo. Este ano as chuvas vieram, salvaram a situação. Mas não acho que a crise dos alimentos seja por causa da questão do etanol. Ao contrário, eu acho que isso é um avanço. O fato de nós termos agora carros flex (movidos a álcool e gasolina) é um avanço. E não é verdadeiro que a cana esteja expulsando a produção de alimentos. Isso pode estar acontecendo nos Estados Unidos, por causa do milho. O milho, sim, aí pode haver problema, o aumento do preço da soja e não sei o quê. Mas o aumento do preço dos alimentos não deriva dos combustíveis, deriva da situação da China e da Índia, que aumentaram muito a demanda, e também de uma riqueza do mundo que aumentou. Digamos que esta é uma questão equivocada. É de má fé dizer que foi por causa da cana que está havendo o agravamento da situação alimentar, isso não é verdadeiro. IG: Do que o senhor mais se orgulha de ter feito nos seus oito anos de governo e do que o senhor mais se arrepende? FHC: Acho que orgulho é uma expressão muito forte, mas o que eu acho que nós conseguimos fazer? Primeiro, a democracia. Para mim isso é importante. Não persegui ninguém, não botei ninguém na cadeia, não fiz chantagem, nada disso. E também com a oposição fiz uma transição absolutamente democrática, pensando no Brasil. Segundo, sem dúvida alguma, a estabilidade da economia. Isso foi garantido com muito sacrifício. Foi muito difícil, levou muito tempo. Estabilidade não é só o Plano Real. É também você colocar em ordem as finanças públicas. Como é que você põe ordem nos bancos, acaba com a dívida dos Estados? Enfim, é esse conjunto de coisas. Em terceiro, é que as mudanças nas áreas sociais, em dois setores, principalmente, naquilo que é universal, Educação e Saúde, foram um marco muito forte o meu governo. Pela primeira vez, todas as crianças foram para a escola, e melhorou também a qualificação do professorado. Mudamos as leis para poder fazer isso. O SUS não existia, existia só no papel. Na prática, foi montado no meu governo. Depois, as políticas sociais todas que deram origem ao que se chama hoje de Bolsa Família, mas que nasceram na Bolsa Escola, na Bolsa de Alimentação, na Bolsa Gás. Isso vem do tempo do Itamar (Itamar Franco, ex-presidente). Toda essa tecnologia nova de transferência de renda, com o cartão que dá acesso a dinheiro, que é dado à mulher, à mãe, quebrou o clientelismo...
IG: A dona de casa é quem recebe o dinheiro.
FHC: Quem recebe é ela.
IG: Mas quem faz as listas são as prefeituras.
FHC: Bom, esse é um problema difícil porque, como quem faz as listas são as prefeituras, o controle disso está sendo muito difícil, já era no meu tempo. Eu tinha certas dúvidas de juntar tudo num cartão só. Isso começou no meu governo, quando o novo governo assumiu já estava preparada na Caixa Econômica esta tecnologia para fazer a junção das bolsas. E eu tinha dúvidas, por quê? Porque, quando o Ministério da Educação dá Bolsa Escola, ele tem mais interesse em vigiar se as crianças estão mesmo assistindo às aulas; quando o Ministério da Saúde dá a Bolsa Maternidade, ele tem interesse em ver se a mulher está sendo bem atendida; quando a Previdência tira a criança do trabalho penoso, ela tem de fiscalizar para que não volte a ele. E, quando você junta tudo num só cartão, diminui o controle, fica mais burocrático. Essa junção das bolsas começou mesmo no meu governo, mas pessoalmente sempre tive dúvidas sobre isso porque acho que é um problema maior controlar se quem precisa está tendo de fato algum efeito na promoção social, se a criança está mesmo indo para a escola ou se a família está só recebendo dinheiro.
IG: E do que o senhor se arrepende?
FHC: Eu me arrependo de várias coisas. Eu acho que mandei reformas demais para o Congresso de uma vez só. A sociedade muda mais devagar do que eu gostaria. Comprei briga com todo mundo. Nós forçamos demais a marcha das reformas. Eu também poderia ter tentado a mudança no sistema de câmbio antes, quando eu deixei para fazer isso no começo do segundo mandato...
IG: Não foi por causa da reeleição?
FHC: A eleição foi em outubro de 1998, mas não foi por isso. Nós não fizemos porque tivemos medo da volta da inflação. Depois, ficou provado - engenharia de obra feita é mais fácil, né? – que a inflação não voltaria, como não voltou. A gente poderia ter feito a mudança cambial antes que não voltaria a inflação. De má fé, as pessoas, e inclusive o Delfim Netto repete sempre isso, disseram que era populismo cambial. É mentira, não foi para ganhar a eleição que adiamos a mudança.
IG: Ele e outros críticos disseram que essa crise cambial quebrou o País...
FHC: Isso é tudo lero-lero. Quem quebrou o País foi ele! Ele quebrou o Brasil em 1982, mas em 1999 não quebrou o País coisa nenhuma. O que acontece é que nós podíamos ter feito uma mudança antes.
IG: O senhor deve ter visto uma reportagem do “Financial Times”, publicada no último final de semana, em que o diário financeiro britânico faz a seguinte avaliação: “Lula deve deixar o cargo em 2010 proclamado como o presidente do grau de investimento, uma reputação bem melhor do que a do seu predecessor que, devido aos problemas enfrentados no setor de energia, saiu da Presidência taxado de presidente do apagão”. O que o senhor gostaria de responder ao jornal? FHC: Que ele está mal-informado! Não era isso que ele dizia na época do meu governo. Esta coisa do apagão não ficou como uma marca pessoal minha. É uma situação real do Brasil, e que não está resolvida até hoje. Nós escapamos do apagão há pouco tempo porque choveu. A questão do apagão ali não foi falta de investimento em eletricidade. Em média, nós investimos por ano muito mais do que o governo atual. Fizemos a conexão com a Venezuela, com a Argentina, com a Bolívia, na questão do gás. Ali o que houve foi falta de planejamento no manejo das águas. E por que houve isso? O ministro das Minas e Energia, que era do PFL, na verdade, achava, e talvez até com razão, que daria para atravessar o período de estiagem e não haveria apagão, e não houve apagão. Mas nós resolvemos fazer um racionamento rigoroso. Nós nos assustamos, nós mesmos dissemos ao País: “Ah! Tem que fazer racionamento e tal”. E não era essa a posição do Ministério até que mudou o ministro. O novo ministro não sabia como estava a situação, e nem eu... Portanto, o governo tem responsabilidade, eu não sabia o grau de gravidade da situação. Como é que podia não saber que havia um problema de água? Talvez nós pudéssemos não ter assustado tanto a população. Mas, enfim, isso não inibe o problema. O Brasil tem um problema de energia que não está resolvido.
IG: Como principal referência do PSDB, como o senhor está vendo a guerra entre tucanos que apóiam o Alckmin (Geraldo Alckmin, pré-candidato à Prefeitura de São Paulo) e aqueles que defendem a aliança com o Kassab (Gilberto Kassab, prefeito e pré-candidato à reeleição)? O que o senhor considera o melhor para o seu partido? Por trás dessa disputa municipal já está em jogo a sucessão de 2010? O senhor tem algum palpite sobre quem será eleito presidente?
FHC: Em todos os partidos, sobretudo os partidos maiores, que têm mais chances de ganhar, quando se aproxima uma eleição, as opiniões se dividem, isso é normal. A opinião majoritária tem que prevalecer e todo mundo vai ter que ficar junto. Fiz uma análise algum tempo atrás: se a política fosse racional, era melhor preservar o Geraldo Alckmin para ser candidato ao governo de São Paulo. Entretanto, ele não gostou da minha observação. Ele quer ser candidato já e ele tem condições de ser. Eu achava melhor preservá-lo porque nós tínhamos condições de reeleger o prefeito atual agora e manter o governo do Estado em 2010, mas a política não é racional. Agora a gente tem que buscar um entendimento para evitar que haja uma guerra entre aliados. Não é fácil, mas vou me empenhar nisso. Vou seguir o meu partido.
IG: Quer dizer que agora o senhor apóia o Alckmin?
FHC: Eu apóio. Se a convenção votar por ele, vou apoiar o Alckmin, mas vou fazer de tudo para preservar a aliança. O Kassab é um bom prefeito, não é nosso inimigo, e a Prefeitura do Kassab é tucana também, então é uma situação difícil.
IG: E como é que fica o discurso do PSDB com candidato próprio?
FHC: Fica difícil, muito difícil... Por isso que eu queria outra solução. Agora, quanto ao palpite para a sucessão presidencial que você está me pedindo, acho o seguinte: não se pode nunca minimizar a força do governo, sobretudo quando o presidente está com popularidade e quando tem um partido que é aguerrido. Eu não minimizo essa força. Acho, entretanto, que daqui até o término do mandato muita coisa vai acontecer ainda. Não sei se para o bem ou para o mal, depende de como se levar as coisas. Na oposição, hoje, quando você olha as pesquisas, o PSDB tem um nome consolidado, que é o nome do Serra (José Serra, governador de São Paulo), e tem um nome promissor, que é o nome do Aécio (Aécio Neves, governador de Minas Gerais). Assim como eu disse sobre a questão da Prefeitura, a análise vale para a Presidência também. A partir de um certo momento, um dos dois, aquele que tiver mais chances, vai ter o meu apoio, e vou fazer tudo para que seja apoiado pelo outro. Porque, se não, não é partido. Nós temos chances de ganhar. Por quê? Porque nós temos influência nos dois grandes eleitorados do Brasil, São Paulo e Minas. Havendo uma boa postura e coesão interna nós ganharemos com qualquer um dos dois. Neste momento, está à frente o Serra. Ele tem por volta de 40% nas pesquisas e o Aécio tem cerca de 10%. Mas isso pode mudar. Os dois são do PSDB, os dois são bons governadores, o Aécio também é um bom governador. Vamos ver o que vai acontecer mais perto de 2010. Temos que criar um clima em que um apóie o outro, qualquer que seja. Você não pode dizer, “só vou apoiar se for o Serra”. Os dois são bons, eu vou com qualquer um dos dois.
IG: Analistas políticos têm insistido ultimamente em apontar a falta de unidade, de bandeiras, de projetos, de iniciativa da oposição. Com este vazio, muitos setores da mídia acabam assumindo este papel, que seria dos partidos de oposição, como o presidente Nicolas Sarkozy denunciou outro dia que estaria acontecendo na França. O que o senhor pensa disso?
FHC: Eu penso que é verdadeiro. A mídia no Brasil muitas vezes assume o papel dos partidos, fala pela sociedade. Não é que não exista quem fale. Mas, como o Congresso Nacional tem voz baixa no momento, a oposição fala, mas não é ouvida, e a oposição só vai ser ouvida quando ela definir os seus candidatos. Aí é que os candidatos vão ter que falar pela oposição. Porque numa democracia a palavra política que vale é de quem tem voto. Como tenho muita consciência do meu papel, falo como uma pessoa independente e sou ouvido nos círculos de opinião, mas não pelo povo. O povo só vai ouvir quem for candidato. Se eu quisesse ser ouvido pelo povo, eu tinha que ser candidato. Quando eu digo que não serei candidato, eu sei que não vou ser ouvido, mas aqueles que decidem que vão ser candidatos, esses têm obrigação de marcar posição.
IG: Qual seria a bandeira principal hoje de um candidato da oposição?
FHC: Vote em mim porque eu vou fazer o Brasil avançar mais. Não é dizer que não avançou. É dizer que eu vou fazer o Brasil avançar mais. O meu partido iniciou tudo isso, não é contra, mas eu vou poder avançar mais. Tenho mais competência técnica, tenho estilo, não estou marcado pela corrupção e vou fazer o Brasil avançar mais. Acho o seguinte: você tem que mostrar que o Brasil tem muita potencialidade econômica e vai avançar independentemente do governo. Os motores já estão em marcha. Agora o problema é que o candidato de oposição tem que dar segurança ao eleitor de que não vai perder o que já tem. Esse mundo é muito dinâmico, mas ele é muito inseguro para o povo, quer dizer, o povo não vai votar num candidato em que não veja garantias do tipo “olha, eu não vou piorar a sua vida, vou manter e melhorar”. Ambos têm credencial para dizer isso. O Serra teve papel muito importante como ministro da Saúde. Ele pode dizer “eu fiz o genérico, eu fiz o programa de combate à aids, eu fiz o SUS”. Tem que dizer que vai lutar pelo povo.
IG: E o Aécio tem o que para oferecer?
FHC: Ora, o Aécio é um grande governador de Minas, ele tem um apoio imenso em seu Estado.
IG: E qual seria a bandeira dele?
FHC: A dele seria a da eficiência da gestão e a simpatia. Cada um tem seu estilo, mas nós temos cartas para jogar.
IG: Nas minhas muitas viagens pelo Brasil, tenho sentido um abismo entre o permanente clima de fim de mundo encontrado entre políticos e jornalistas em Brasília, às voltas sempre com crises e CPIs, e o clima de alto astral que predomina em quase todos os setores da sociedade fora dos gabinetes do poder. Como sociólogo e estudioso do Brasil, como o senhor analisa esse descolamento entre o Brasil oficial e o Brasil real que a gente vê por aí?
FHC: Esse descolamento é antigo e aumentou, e aumentou por quê? Porque a política se desgarrou da vida cotidiana do povo. Desgarrou, quer dizer, ela passou a ser uma conversa fechada entre políticos e jornalistas. É um mundo fechado e, mais ainda, visto pelo povo é um mundo de privilégio e de impunidade. Portanto, é um mundo que não tem credibilidade. Não é que a vida esteja boa para todo mundo, não está. Tem muitos problemas. É só você entrar na classe média para ver como ela está apertada. Vai ver a questão do emprego, que muitas vezes não existe, vai ver a escola, vai ver a saúde, tem muita reclamação, mas não está piorando. O que está piorando? A crença nas instituições.
IG: O senhor sente que, apesar de tudo isso, aumentou a auto-estima do brasileiro?
FHC: Eu acho que o brasileiro sempre teve boa auto-estima. As pesquisas mostram isso. O povo sempre acreditou no Brasil, mais do que os políticos e os jornalistas. Eu tinha essa mesma sensação no meu governo. O lado negativo era muito mais a fofoca da política, que fica uma coisa cansativa, repetitiva. Vou lhe dizer uma coisa: eu não tenho mais paciência para ler o que se chama editoria política dos jornais. Não tenho, porque é muita intriga, é jogar um contra o outro. Você sabe que é intriga. Vejo que dizem a meu respeito, sobre o que eu penso, o que eu falo... Isso não corresponde ao que eu penso, ao que eu falo, muitas vezes. O jornalista não é ele que faz a intriga, não. É outro que fala para ele. O sujeito vem aqui falar comigo e sai daqui contando para os jornalistas que eu disse não-sei-o-que, que eu penso isso ou aquilo, tira do contexto. Eu tenho por hábito o seguinte: fulano falou mal de mim, eu digo “ah, é? Está bem”. Não vou me preocupar, porque se você começar a se preocupar com isso... Olha, não há uma entrevista que eu dê, com pouquíssimas exceções como a sua, que não me forcem a falar mal para pinçar uma frase contra o Lula. Aí eles vão ao Lula e fazem a mesma coisa comigo. Uma pessoa que assiste à televisão, o que ela vê hoje? Ela vê esporte, crime, violência, bandalheira, corrupção, e o presidente Lula falando. Não tem mais nada.
IG: É uma obsessão por assuntos que vão se repetindo...
FHC: É o dia inteiro, todo dia a mesma pauta. É como fazer pesquisa de opinião pública e não ouvir o outro lado, só tem o nome do presidente Lula. Na televisão, ou está tudo ruim ou é o Lula falando, naturalmente falando bem dele e do governo. É assim que o povo se informa na televisão. O jornal é mais aberto, tem alguns colunistas excelentes. Não vou nominar, mas são quatro ou cinco de primeira grandeza. Agora, a reportagem, o dia-a-dia da política, é só fofoca!IG: Fofoca e desgraça...
FHC: É, daqui e de fora. Agora mesmo tivemos esse terremoto na China, aquele tarado lá da Áustria, o tarado de São Paulo, é desesperador! E fica, fica, repete, repete, repete. Depois você vai querer que o povo se interesse por outros assuntos, não vai se interessar. Fica apático.
IG: Se o senhor se encontrasse hoje com o presidente Lula, o que gostaria de dizer a ele sobre esse episódio do vazamento de dados das despesas do seu governo? Como imagina que essa CPI dos cartões corporativos vai acabar? O que o senhor gostaria de dizer ao presidente Lula?
FHC: “Será que você não está vendo o que está acontecendo? Você acha que tem cabimento nós chegarmos a esse grau de mesquinharia, dadas às relações que nós sempre tivemos, que sempre foram boas?” Agora, fora isso, eu ia dizer a ele o que eu tenho escrito até: “Ô, Lula, você não acha que chegou o momento de pensar maior? O Brasil está indo para um outro patamar e a política está indo para o buraco. Não dá para a gente pensar grande? Não dá para haver um debate? Não é para falar do seu governo. É um debate nacional sobre temas significativos. Por exemplo, o que nós vamos fazer com a riqueza petrolífera que está aí? Como é que nós vamos olhar para o futuro?” Eu estou disposto a entrar neste debate. Este seria um grande debate nacional, sim.
IG: O senhor acha que um dia será possível fazer em São Paulo a aliança que PSDB e PT estão construindo com Aécio Neves e Fernando Pimentel (prefeito de Belo Horizonte) em Minas? Por que em Minas é possível e, em São Paulo, é tão difícil ou impossível?
FHC: Talvez porque PSDB e PT sejam muito fortes em São Paulo. Eu digo isso já há alguns anos: a disputa entre PSDB e PT não é ideológica. Pode ter sido no passado, existem algumas questões, por exemplo, a visão de funcionamento do Estado, da democracia, no PSDB é diferente do que no PT. O PT é mais corporativista, mais aparelhador. Mas não é essa a briga principal nossa. É uma briga de poder apenas, saber quem é que vai mandar. Eles não passaram o tempo todo me acusando de neoliberal para depois fazer exatamente a mesma política que eu estava fazendo que não era neoliberal, nem a minha e nem a do Lula? Fizemos o que é possível no mundo de hoje em termos de compatibilizar o mercado com o interesse social. Mas não passaram o tempo todo só discutindo isso, fingindo que tinham um argumento ideológico? Queriam apenas ganhar a eleição e isso é natural, a política é assim. Então, aqui em São Paulo é difícil. Quando nós fizemos a transição, eu imaginei que, a partir de 2003, nós teríamos um diálogo maduro. Ao invés de ter um diálogo maduro, o Zé Dirceu (José Dirceu, ex-ministro-chefe da Casa Civil) inventou a herança maldita da qual eles vivem até hoje - não da maldita, da boa. E o Lula nunca fez um gesto de diálogo, nunca. Definiram, a meu ver equivocadamente, o PSDB como adversário principal. Foram buscar apoio no que havia de mais podre na política brasileira, e deu no mensalão. E isso não é responsabilidade do PSDB, é do PT. Nós fizemos um caminho que não era de afastamento.
IG: E esse caminho tem volta?
FHC: Hoje é mais difícil porque as marcas vão ficando, você perde a confiança. Fizeram um dossiê contra a eleição do Serra, um dossiê de cartão corporativo agora. Vamos ver no que vai dar isso. Acho que não vai dar em nada. A minha tese é muito simples: não há gasto secreto nenhum, nunca pensei em gasto secreto, é uma invenção. O que precisa é ter um controle maior dos gastos, criar novos instrumentos. Duas coisas que estão erradas: a difusão dos cartões - me disseram, e eu não sei se é verdade, precisa verificar, que nós tínhamos cento e poucos e agora já são mais de 11 mil - e poder tirar dinheiro à vista. Deveria ser o oposto para deixar registrado o gasto. Esses são os dois erros fundamentais.
IG: Mas a CPI fica nesta história de que um gastou tanto nisso, o outro gastou xis naquilo...
FHC: É ridículo! É ridículo! E tem outra coisa: aparece lá, como se fosse gasto pessoal meu ou da Ruth o que é gasto dos palácios. Aluguel de carro. Uma que ela nem sabe que o carro é alugado, ela tem um carro da primeira-dama. Alugaram o carro da segurança sei lá de quem para estar viajando. Aí vem lá: 180 garrafas de champanhe nacional, sabe o que é isso? Despesa do dia 28 de dezembro de 1998. Claro, porque no dia primeiro de janeiro de 1999 teve uma recepção no Palácio por causa da posse. Gasto pessoal de FHC? Isso é ridículo... Nós estamos apequenando a política brasileira. Isso que eu diria ao Lula: “Não é possível, você não vê a que ponto chegamos?”

Saturday, May 10, 2008

Silva, um morto sem sepultura - Blog do Reinaldo Azevedo - 08/05/08

Escrevi o texto abaixo no dia 15 de fevereiro de 2005, três dias depois do assassinato de Dorothy Stang. Acho que vale a releitura ou leitura. Explica, em boa parte, a grita que se vê hoje em dia. Do autor do assassinato de que se fala abaixo, nada mais ficamos sabendo. A vítima não é dessas que despertam a atenção da imprensa estrangeira e dos “humanistas” brasileiros.
*
Quantos Luiz Pereira da Silva vale uma Dorothy Stang? Como? Você não se lembra, leitor, de Luiz Pereira da Silva? Não o condeno por isso. Ninguém dá bola para um Silva no Brasil, a menos que ele seja adotado pela patrulha politicamente correta, torne-se um burguês sem capital, reproduza o sistema de exclusão que jurou combater e se torne um cronista das injustiças brasileiras, admitido nos salões requintados para exibir o seu humor rombudo.

É verdade, leitor, a mídia também deu pouco destaque a Luiz Pereira da Silva e confere ao assassinato de Dorothy Stang dimensões épicas. Ela, não há como ignorar, é a missionária americana assassinada em Anapu, no Pará, por pistoleiros que estavam a serviço, tudo indica, de grileiros de terra. Um evento sem dúvida bárbaro, que merece o repúdio de que está sendo objeto no Brasil e no mundo. Faz bem o jornalismo brasileiro em se interessar pela questão. Está correto o presidente Luiz Inácio Lula Incluído da Silva ao mobilizar três ministros de Estado para prantear a sua morte e buscar os culpados. Que esse crime não fique impune e que seus autores e mandantes sejam trancafiados. Mas e quanto a Luiz Pereira da Silva?

Ninguém assistiu ao nada formidável enterro de Silva. Ninguém foi regar o seu cadáver na esperança de que estivesse fertilizando uma causa. O Estado brasileiro, por meio do governo, grita seu silêncio cúmplice e covarde diante de seu corpo. Ele não é nada. Ele não adula as culpas dos intelectuais incluídos de esquerda que pretendem teleguiar o movimento de libertação dos oprimidos a partir da universidade; ele não serve à estranha escatologia de Dom Tomás Balduino, este impressionante bispo que responsabiliza o agronegócio pela morte da religiosa; ele não serve à maior empresa jamais criada de produtos ideológicos no país chamada MST; seu corpo não se presta à mística da luta do Bem contra o mal; de seu cadáver seco das lágrimas das ONGs, das lágrimas dos povos da floresta, das lágrimas de Lula, das lágrimas de Miguel Rossetto, ministro da Reforma Agrária, das lágrimas de Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, das lágrimas de Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, de seu cadáver seco, enfim, não brota a epifania pagã, não se constroem ideologias finalistas, não se vislumbra o fim dos tempos, não se promove o julgamento dos vivos e dos mortos.

Luiz Pereira da Silva é um morto sem sepultura; Luiz Pereira da Silva é um morto de quinta categoria; Luiz Pereira da Silva confunde as afinidades eletivas dos demagogos brasileiros; Luiz Pereira da Silva pertence àquela estranha categoria de homens que, por mais que sofram, jamais vão se tornar mártires de coisa nenhuma; Luiz Pereira da Silva era pobre demais, desimportante demais, vulgar demais até para ser oferecido em holocausto no altar de fantasmagorias de dom Balduíno; Luiz Pereira da Silva não serve como cordeiro do Deus justiceiro do MST.

Sim, para quem ainda não sabe, é chegada a hora de dizer quem era Luiz Pereira da Silva, doravante agora só conjugado o verbo no passado: “era”, pretérito imperfeito, verbo interrompido pela “luta” dos oprimidos de carteirinha convertidos em assassinos impunes e incensados pelo Estado. Fez-se um “não ser”. Luiz Pereira da Silva era o policial da boa gente pernambucana, um Silva que não fez direito a lição de casa, tornado prisioneiro, torturado e assassinado num assentamento do MST. O episódio se deu no dia 5 de fevereiro na cidade de Quipapá, em Pernambuco.

Outro Silva, Cícero Jacinto, também vítima de tortura, foi feito refém por algumas horas. Ambos estavam no encalço de um assentado convertido em bandido comum. Lula não disse nada. Nilmário Miranda não disse nada. Márcio Thomaz Bastos não disse nada. Miguel Rossetto não disse nada. A própria imprensa não disse quase nada. Dorothy Stang, ao menos, é um ser que se conjuga no futuro. Seu corpo pranteado frutificará. De Silva, dentro em breve, não terá restado senão a memória privada de sua família, uma gente a que também não se dá muita importância. Um dia vai sumir. Historiadores ainda hão de incluir Dorothy Stang no capítulo do que chamam, com aquele vitimismo do triunfo que lhes é bem típico, a “história dos vencidos”. Já o Silva, coitado!, terá sumido na poeira dos tempos: pobre demais para que os “vencedores” se importem com ele; demasiadamente humano para que os vencidos oficiais o transformem em símbolo.

E não me venham acusar de cínico ou impiedoso pela pergunta que abre este texto. A contabilidade macabra não é minha, mas do governo Lula. Quem discrimina cadáveres, atribuindo a uns a santidade política e a outros o desprezo covarde, é o Planalto, não eu. Qualquer morte, reza aquele clichê, belo e profundo ainda assim, nos diminui. A cada uma, é por nós, sem dúvida, que os sinos dobram. A despeito disso, vejo-me compelido a escrever: a do soldado Silva evidencia com mais agudeza alguns riscos que corremos do que a de Dorothy Stang.

Sintomas
Espero que a polícia encontre os responsáveis pelas mortes do policial e da missionária e que, no segundo caso, também sejam presos os mandantes, se houver. Que a Justiça se encarregue deles e lhes dê a pena máxima admitida pela lei brasileira. Assim como jamais condescendi com causas que justificariam o terrorismo, nada, nada mesmo, justifica o homicídio de quem não pode nem mesmo se defender. Não há considerandos a respeito. A questão é absoluta. Mas as duas mortes, conquanto remetam ao mesmo mal, frutificam de forma diferente.
O mal que às duas mortes tem nome: desídia, incompetência do governo federal, que, por ação e omissão, vê explodir a violência no campo. É por ação quando, sabidamente, órgãos do Ministério do Meio Ambiente e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (e o Incra é a prova escancarada disso) se transformam em aparelhos da militância política, renunciando àquela que é sua condição imanente — ser um corpo técnico para arbitrar as disputas segundo o bem comum — para se tornarem agência de um dos lados do conflito.

Há dias, Miguel Rossetto foi aplaudir a inauguração de uma escola superior de invasões criada pelo MST. Ali, ouviu impassível o discurso de líderes que, sem receio, advogaram a invasão também de terras produtivas. Age para estimular a violência no campo um governo que, dispondo de uma lei para coibir invasões, decide, de forma consciente e acintosa, não aplicá-la. E os demais Poderes e instâncias da República, a começar pela Justiça e pelo Ministério Público, se calam. Age para estimular a violência no campo um governo que, pela boca de seu ministro da Justiça, prega a acomodação tática da Constituição diante dos abusos óbvios do MST.

Omite-se o governo — e, portanto, estimula a violência no campo — quando permite que, ao arrepio de qualquer controle ou acompanhamento responsável, a questão fundiária se transforme em objeto de disputas de organizações não-governamentais e grupos de pressão que põem seus preconceitos e idiossincrasias acima das necessidades econômicas das comunidades nas quais atuam, elegendo, por critérios que lhes são próprios e alheios a qualquer estratégia pública, os perdedores e os vencedores, satanizando uns, incensando outros, fazendo de uns as bestas do apocalipse e, de outros, os anjos da redenção. Ademais, que se observe: outro cadáver se conta em Anapu: trata-se de Adalberto Xavier Leal, funcionário de um suspeito de ser o mandante da morte da religiosa.

O campo voltou a ser palco de ajuste de contas que estão sendo feitos ao arrepio da polícia e dos poderes constituídos da República. À medida que o Estado brasileiro permite que uma força criminosa promova a indústria de invasões, arma, evidentemente, a mão dos que decidem resistir, que se torna, obviamente, não menos criminosa. A diferença importante é que os mortos de um dos lados desaparecem na poeira do tempo, o que vai acontecer com Leal; os do outro viram mártires. E, nesse caso, é impossível deixar de reconhecer: os mortos tornam-se combustível da causa, fertilizam a terra sangrenta regada com a água benta de alguns bispos e o delírio maoísta de alguns santos do pau oco.

As duas mortes, sem dúvida, envergonham as instituições brasileiras, mas há diferenças, volto ao ponto, que expõem aspectos distintos do mesmo mal. Os assassinos de Dorothy Stang são, sob qualquer ponto de vista, marginais; os assassinos do policial Silva têm o desplante de se dizerem vítimas; os assassinos de Dorothy Stang matam e fogem para o mato, e a polícia terá de caçá-los; os assassinos de Silva, na prática, justificam o seu ato e ainda penduram a conta de sua violência nas costas da sociedade brasileira; os assassinos de Dorothy Stang, com razão, tornam-se párias sociais; os de Silva reivindicam a santidade e o direito à justiça com as próprias mãos como se autodefesa fosse; os assassinos de Dorothy Stang praticam o ato nefando correndo, vá lá, os riscos e por empreitada privada; os assassinos de Silva, na prática, são financiados pelo poder público e sabem que não correm nenhum risco ou perigo; os assassinos de Dorothy Stang não merecem nenhuma consideração ou não têm nenhuma circunstância que atenue o horror praticado — e isso está certo; os assassinos de Silva reivindicam uma inocência inata que explica qualquer horror — e isso está errado.

E há mais: Dorothy Stang, é preciso reconhecer, estava numa luta cujos riscos não ignorava. Movia-se naquele espaço da militância que, sabemos todos, é obrigada a flertar com as franjas da ilegalidade, aonde o Estado ou ainda não chegou ou, como é o caso, por incompetência e decisão do governo, jamais chegará. Sua morte agride qualquer princípio da civilidade e da necessária tolerância, jamais se duvide. Mas, entendo, rebaixa menos a República do que o assassinato daquele policial. Enquanto os Silva, já sabidamente policiais, estavam sendo submetidos à tortura, era o Estado brasileiro que se fazia refém de um grupo que aplica suas próprias leis e tem sua própria compreensão do que seja a justiça.

A morte de Dorothy Stang é a prova de um Estado inepto, ausente e incapaz. A morte de Silva é a prova de um Estado contaminado, conspurcado, seqüestrado, feito ele também refém de alguns grupos de pressão. Quando o corpo de Dorothy Stang tombou, levantava-se justamente a indignação nacional. Quando o corpo de Silva tombou, armou-se apenas o silêncio pusilânime do governo, da mídia e das ONGs.

Tanto o silêncio, num caso, como o alarde, no outro, são sintomas evidentes de que, a essas mortes, outras se seguirão. Um dos corpos, o de Silva, já foi esquecido. O outro, o de Dorothy, é um cadáver que procria, é um cadáver que alimenta a causa, é um cadáver, no fim das contas, útil, é um cadáver cujo sentido é gerar outros cadáveres para que, do acúmulo de mortes e mártires, brote a pátria dos sonhos, que é puro horror, de certos grupos que hoje encabrestam a República.

Não pensem que, à feição do governo, também eu lamente mais uma morte do que outra. Não! Tenho a ambição de ter vergonha na cara. Considero indecente, essencialmente imoral, estabelecer o preço político de uma vida, seja para endeusar os mortos, seja para ignorá-los, justificando, tanto em um caso como no outro, a violência dos vivos.



Por Reinaldo Azevedo