Friday, May 23, 2008

Do Plano Real ao surreal? - Do site www.e-agora.org.br

Dionísio Dias Carneiro, O Estado de S. Paulo (23/05/08)

O Plano Real entra no seu 15º ano. Já é história. Os atuais estudantes de macroeconomia, hoje com 20 anos, conheceram a superinflação brasileira pelos livros. De eventuais histórias familiares podem conhecer lendas urbanas em torno das inúmeras batalhas dirigidas para os sintomas de aumentos generalizados de preços: as tabelas da Sunab para combater a vilania impatriótica dos açambarcadores que provocavam inflação, as proibições das exportações "para proteger o consumidor brasileiro" e a institucionalização dos controles de preços por um Conselho de Ministros. Podem ouvir falar das tentativas de soluções que envolveram congelamentos generalizados de preços: das máquinas de remarcação, contra as quais ficavam a postos os fiscais do Sarney; o combate direto à alta de preços de produtos essenciais, frustrado pela incapacidade de encher prateleiras vazias; as corridas patrióticas para laçar bois no pasto; e a criminalização dos supermercados.

Mas, para os que viveram as frustrações de uma geração, os pesadelos não parecem tão distantes. Os jornais registram uma frase de Lula sobre o mal da inflação que dá arrepios: "A culpa é tanto do comprador quanto do vendedor." Não, presidente, a inflação não ocorre no momento em que o preço é aumentado. Ela nasce das ações do governo que ignoram os limites da economia.

Não precisamos buscar exemplos no nosso passado: basta olhar para o Sul e ver o que tem feito a dinastia Kirchner; para o Norte, e examinar a mobilização patriótica e inflacionária do socialismo bolivariano; para o Sudoeste, o novo governo paraguaio do bispo "progressista" que atribui ao Brasil as infelicidades de seu povo; para o Oeste, há esforços ingentes do companheiro Morales que investe contra a Petrobrás, mas não consegue investir no futuro da Bolívia e aumentar a produção.

Os jovens economistas treinados na era da grande moderação (e grande confiança no poder dos bancos centrais) podem ter dificuldade em entender de que forma governos desorganizam as economias pela via da acomodação inflacionária, da mesma forma que os de minha geração do pós-guerra não entendiam como se gerava uma grande depressão.

A grande desesperança causada pela alta inflação nos anos 80 e 90 frustrou o crescimento pretendido pelos militares. A posteriori, parece difícil entender o caminho da insensatez que os governos podem construir com um desfiar de boas intenções.

Nas últimas semanas, essas boas intenções atingiram uma apoteose. Não pelo bom humor que despertaram o ministro da Fazenda, exibindo seu cofrinho vazio, e o novo ministro do Meio Ambiente, mas pelos anúncios de políticas com estímulos conhecidos e pouco eficazes. Gostaria de poder comemorar o "farol alto", como pregava Otto Lara Rezende, mas o conjunto de propostas lembra, aos que vivenciaram os 20 anos de inflação elevada e desorganização econômica, os erros na percepção das restrições ao crescimento econômico brasileiro. Muitos dos mesmos personagens que consideraram o Plano Real um golpe político que ruiria tal qual um castelo de cartas, hoje aplaudem um verdadeiro "Plano Irreal", que pretende providenciar maior crescimento sem maior poupança interna, despesa pública crescente com inflação acelerada, abuso de impostos que distorcem os preços relativos, poucas ações para aumentar a produtividade, tudo coroado por chavões que reciclam as boas intenções do 2º Plano Nacional de Desenvolvimento dos anos 70.

É surreal o conjunto de propostas, por não se apoiar em diagnóstico macroeconômico coerente. Do conjunto, percebe-se a preocupação com "a nossa querida demanda", quando se trata de expandir "nossa almejada oferta". Depois de optar pela tolerância com a inflação, há um ano atrás, a Fazenda oferece seus préstimos para, em plena aceleração inflacionária, manter o ritmo insensato do crescimento do crédito para não desestimular os investimentos.

A estagflação mundial, de que tratamos em artigo de 26/10/2007 neste espaço, é hoje o diagnóstico corrente. O ambiente externo é mais obscuro e, assim, a falta de percepção de que o mundo entra em recessão com inflação crescente. Os preços externos estão favoráveis graças ao efeito China. Mas sem maior poupança interna o balanço de pagamentos se torna frágil. A demora na percepção da realidade pode custar caro ao presidente, que terá de explicar aos seus eleitores por que mesmo o poder de compra dos trabalhadores caiu, apesar da alta confiança dos investidores quanto ao futuro da economia brasileira.

Dionísio Dias Carneiro, economista, é diretor da Galanto Consultoria e do Iepe/CdG

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