Saturday, March 29, 2008

A anomalia colombiana - Eduardo Viola e Héctor Ricardo Reis, Correio Braziliense (16/03/08)

Do site e-agora.org.br

A maior dificuldade para entender o recente conflito reside no caráter anômalo da realidade colombiana. A Colômbia foi, durante a segunda metade do século 20, um país oligárquico, cujas elites pactuavam uma democracia de cavalheiros com baixa inclusão política e pobre Estado de Direito, o que promoveu a ascensão das Farc, de inspiração comunista guevarista, nas décadas de 1960 e 1970. Na década de 1980, as Farc começaram a degradar-se ao relacionar-se com o narcotráfico. Na de 1990, com o colapso do comunismo, a degradação se aprofundou, tornando-se mistura de organização insurrecional e criminosa com território próprio, sem equivalentes no Ocidente.

Como trágico complemento, as elites colombianas se acomodaram à presença das Farc: de um lado, fazendeiros e industriais organizavam uma força de proteção privada também imbricada com o narcotráfico — as Autodefesas Unidas da Colômbia ou Paramilitares — e, de outro, os políticos e burocratas negociavam lucros provenientes das drogas e territórios que ficavam sob controle das Farc. A sociedade colombiana atingiu o fundo do poço: economia, sociedade civil, partidos políticos, polícia e Judiciário eram sistematicamente colonizados pelo crime organizado.

Uma dimensão fundamental da anomalia colombiana consiste no surgimento, no inicio desta década, de um movimento político e social favorável a confrontar as Farc e os outros movimentos de narcoguerrilha (ELN e Paramilitares) combinado com uma firme vontade política de reconstruir a governabilidade e o Estado de Direito. Uribe se elegeu presidente em 2002 correndo por fora do sistema partidário oligárquico e se reelegeu em 2006, sendo que, atualmente, conta com maior apoio popular da América Latina.

Uribe está derrotando o ilícito e dando esperanças de Estado de Direito a uma população que estava exausta de viver sob a chantagem cotidiana dos criminosos, demonstrando capacidade para restaurar o monopólio da violência em mãos do Estado (Bogotá hoje é mais segura que o Rio de Janeiro). Mas nessa luta os governos dos países vizinhos o deixaram sozinho e somente recebeu o apoio dos EUA.

A normalidade de muitos países vizinhos reside, pelo contrário, no faz-de-conta, isto é, em evitar o combate frontal contra o crime organizado e o ilícito em geral, colocando ao Estado de Direito bem depois do populismo e de seu arsenal de retórica e assistencialismo. Para os governos de Chávez e Correa, a existência de santuários em seus territórios para albergar terroristas não é realmente um problema, mas o que é, sim, um problema gravíssimo é cruzar uma fronteira para castigar um grupo do alto comando da Farc.

A normalidade de muitos países sul-americanos, incluído o Brasil, está ancorada numa visão obsoleta de parte importante de suas elites políticas e culturais, com relação ao mundo em que vivemos, o qual lhes impede ver as Farc como ameaça à paz na região amazônica e ator importante do comércio internacional de drogas e armas. Inclusive para políticas estratégicas, como reduzir o desmatamento e cooperar na governança da mudança climática, dos recursos hídricos e da biodiversidade, os países amazônicos precisam impor o governo da lei sobre o ilícito.

Baseado numa ampla legitimidade democrática e contando com forças militares e policiais bem treinadas, o governo Uribe está impondo severas derrotas às Farc nas últimas semanas. Isso gera desespero em Chávez, que tem nas Farc um dos instrumentos de expansão da revolução bolivariana. Por isso, em Santo Domingo, diante das provas documentais em mãos do governo colombiano — referentes ao apoio dos governos da Venezuela e do Equador às Farc — Correa e Chávez decidiram retroceder.

Onde ficou a liderança do Brasil na América do Sul? A relação ambígua e promíscua do governo Lula e do PT com Chávez, Correa, Morales e as Farc impede o Brasil de exercer o papel de liderança regional que poderia ter pelo seu tamanho e modernidade econômica. Uma interpretação realista e democrática do interesse nacional brasileiro permitiria compreender que a derrota das Farc e de Chávez é tão boa para o Brasil quanto é boa para Colômbia e para os EUA.

Nos conflitos atuais na América do Sul, o aspecto interestatal é secundário. A dimensão fundamental das relações internacionais na América do Sul, hoje, passa pela oposição entre as forças da modernidade e da liberdade — encarnadas principalmente pelas democracias de mercado chilena, brasileira, uruguaia, colombiana e peruana — e as forças do atraso e do autoritarismo unificadas no projeto bolivariano de Chávez.

Eduardo Viola - Professor titular do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília
Héctor Ricardo Reis - Professor associado do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina

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