Wednesday, September 10, 2008

UM VERMELHO-E-AZUL COM MARCELO COELHO - Blog do Reinaldo Azevedo - 10/09/08

O articulista Marcelo Coelho, da Folha, escreveu, sem dúvida, o texto de sua vida no jornal desta quarta. Ele vai falar de escutas telefônicas e já começa a anunciar o que virá pelo título: “Pânico de gabinetes”. Vamos lá. Ele em vermelho. Eu em azul.

Assunto delicado, esse dos grampos. Prometo ser cuidadoso no que vou falar aqui, mas eu tendo a discordar do espírito geral dos comentários feitos sobre o tema.
Não se esqueçam. Ele prometeu ser cuidadoso — espero que não como o bandido ideal de certo político, que “estupra, mas não mata”.

Estado policial, retorno aos tempos da ditadura, da Gestapo, da KGB? Comparações desse gênero viraram moda.
Não viraram. Moda é andar com o elástico da cueca acima do cós da calça. Moda é decorar havaianas com pedrinhas brilhantes, como vejo fazer as minhas filhas. Isso é moda. Escuta telefônica é um problema político. E Coelho poderia deixar de lado as metáforas exageradas e se concentrar nos bons argumentos de quem combate a escuta. As pessoas mais lúcidas têm dito a respeito que, em vez de estado policial, tem-se é a balcanização da Abin e da Polícia Federal. Mas Coelho quer um argumento tolinho porque, assim, fica fácil responder.

Preocupa bastante, é claro, a disseminação das escutas ilegais. Mas acho que estamos diante de um fenômeno novo, que não se confunde com a antiga realidade dos regimes totalitários.
Truque muito comum em trapaças argumentativas. Eleja o mal maior, o mal extremo, e depois diga que o problema apontado por seu adversário não equivale àquele ápice. Isso fatalmente empurra o oponente para a admissão de que, de fato, não é algo tão grave. Pronto: você não tem razão e, por estúpido que seja, tem a chance de vencer o debate.
Darei um exemplo vindo da imprensa, onde Coelho mais ou menos transita. Juízes têm, Brasil afora, concedido liminares impedindo a publicação de reportagens. Indefensável? Indefensável. Mas você pode começar assim: “Não vamos confundir essas liminares com a volta da censura prévia porque são coisas diferentes...” Claro que são. E daí? No trecho seguinte, Coelho caracteriza o que entende por um estado totalitário a partir o filme A Vida dos Outros. O intuito é mostrar que, em Banânia, as coisas se dão de outro modo.

Tome-se o exemplo da Alemanha Oriental, pátria da famosa Stasi; quem viu o filme "A Vida dos Outros" sabe o pesadelo que era aquilo.
Qualquer suspeito de ser opositor do regime tinha as suas conversas monitoradas.
Numa cena impressionante, uma velhota, vizinha de um cidadão suspeito, abre por acaso a porta do seu apartamento e percebe que um grupo de agentes policiais está no corredor, pronto para instalar os aparelhos de escuta.
O chefe dos arapongas se aproxima da velhota e avisa: se ela contar a alguém o que acabou de ver, sua neta perderá a vaga na faculdade. A velhota fica evidentemente quieta, não revela ao vizinho que ele está sob vigilância e se torna, na prática, cúmplice do regime.
Não é preciso dizer que toda conversa vagamente incriminadora, captada pelos agentes secretos, significa a prisão imediata do suspeito, que, com tortura ou sem tortura, assina uma confissão, é condenado ou provavelmente termina fazendo parte dos informantes do regime.
Para que esse modelo de Estado policial funcione, alguns pressupostos são necessários. O primeiro é que só a polícia detenha os equipamentos de espionagem. O segundo é que a informação passe a ser imediatamente utilizada pelo sistema repressivo. O terceiro é que esse sistema repressivo seja mais ou menos clandestino, ocorrendo à margem da Justiça oficial: cada prisão se assemelha a um seqüestro. O quarto é que, para ter qualquer coisa, emprego, moradia, estudo, o cidadão dependa do Estado.
Pronto! Está demonstrado – precariamente - que o Brasil não é um estado policial de molde comunista. Por que “precariamente”? Direi adiante. Mas notem: a escuta generalizada já começa a parecer algo menos grave...

O funcionamento da "grampolândia" hoje em dia é bastante diferente, e desconhece esses pressupostos.
Será? Sim, é fato: como o Brasil não é uma ditadura comunista, os grampos não funcionam como numa ditadura comunista. Que coisa, não!?
- no Brasil, o grampo se generalizou;
- o grampo não é usado para a repressão, mas para a extorsão e a chantagem;
- o sistema é clandestino — tanto o que está no aparelho de estado como, claro, o operado pela “iniciativa privada”;
- a pessoa não perde o emprego, mas pode perder a reputação numa trapaça. Mas não é estado policial, gente...

Se as famosas maletas da Abin podem ser compradas com facilidade por qualquer pessoa, a conseqüência prática não há de ser uma hipertrofia do poder do Estado. A chantagem e a intimidação se tornam via de mão dupla. Os ocupantes do poder têm sido, aliás, mais vítimas do que algozes no processo.
Entendi errado, ou Coelho acha que um sistema em que todos espionam todos tem lá as suas virtudes?
É uma barbaridade que ele não perceba, ou finja não perceber, que a escuta ilegal de autoridades, para posterior chantagem (e as falas podem ser editadas ao gosto de quem encomenda o trabalho), atenta não apenas contra os grampeados, mas também contra o interesse coletivo. Ora, quem a tanto se presta quer alguma coisa do poder público que não obteria por meios legais. Considerando que a autoridade é o “povo” instituído naquela determinada função, a chantagem é contra o coletivo.

Além disso, as práticas da "grampolândia" costumam ter como destino mais provável não o encarceramento do escutado, mas sim, por meio de vazamentos, as páginas dos jornais.
Duas coisas importantes:
- Coelho fala dos grampos que vazam para a imprensa. E os que não vazam?
- será que não se pode usar a imprensa para a chantagem?

Tudo, nos tempos da Stasi e da KGB, terminava num porão. Agora, tudo se divulga à luz do dia.
É uma frase de incrível irresponsabilidade, especialmente para quem prometeu ser cuidadoso. Existem, estima-se, quase 500 mil escutas legais em curso no país — isto é, concedidas por um juiz. Imaginem as ilegais. Não sabemos delas nem uma parte infinitesimal.

Crescem imensamente as ameaças à privacidade, mas a novidade está em que não parecem crescer, ao mesmo tempo, as condições para o surgimento de um Estado totalitário.
Sei... E tudo o que não é estado totalitário é, então, tolerável...
Na verdade,
Oba! Agora conheceremos “a verdade”
com todos os abusos que possam ser cometidos, uma autoridade grampeada é uma autoridade mais transparente, mais submetida ao controle da sociedade.
É a mais espetacular tolice do seu texto. Então por que não exigir, em nome da transparência, que os despachos das autoridades sejam feitos com transmissão ao vivo, como num grande Big Brother? Esse é o Coelho “cuidadoso”. Imaginem quando ele é descuidado. Esse é o Coelho que prometeu ponderação. Imaginem se ele escrevesse, então, o que realmente pensa, sem os filtros da moderação.

A escuta telefônica pode ser manipulada para destruir reputações; mas o perigo, aqui, vem antes das possíveis irresponsabilidades da imprensa do que de qualquer tentação totalitária do Estado.
Errou de novo! Coelho não sabe nada de imprensa, embora seja um medalhão – em sentido machadiano — do articulismo. Está confundindo tudo de maneira grosseira, xucra. Se uma escuta sobre assunto público vem à tona, se foi entregue a um jornalista, sua obrigação é divulgar. Reter a informação é que passaria a caracterizá-lo como parte do mundo do crime. Se existe uma autoridade sendo chantageada e se a imprensa sabe, sua obrigação é relatar. O jornalista não pode se tornar o dono daquela informação. E atenção:
- se a escuta é ilegal, um crime foi cometido na origem, mas não pelo jornalista, e tem de ser investigado;
- se a escuta é legal, feita no curso de uma investigação sigilosa, o dono do sigilo —a autoridade responsável — é que tem de ser punido.


Não é por acaso que tantos protestos contra o "terror policialesco" dos dias atuais provenham das altas esferas do poder. Se escândalos sexuais tomassem o centro das atenções -como acontece no caso dos tablóides britânicos-, a revolta teria razão de ser. Mas o que se noticia são, acima de tudo, negociatas suspeitíssimas com o dinheiro dos contribuintes.
Andréa Michael, uma jornalista da Folha — não a conheço; tudo o que sei a seu respeito abona o seu comportamento como repórter dedicada apenas à tarefa de informar —, foi grampeada pela Operação Satiagraha. Queriam mandá-la para a cadeia por causa de uma reportagem que foi considerada um alerta para Daniel Dantas. Pergunta óbvia: se Andréa estivesse no esquema do banqueiro, por que fazer a reportagem? Bastaria passar a informação ao empresário privadamente. Como se vê, não são apenas pessoas envolvidas em negociatas que estão sendo grampeadas.

O poder descontrolado da polícia, levando para trás das grades pessoas somente pela suspeita de irregularidades, deve ser coibido, é claro. Atentados aos direitos individuais não têm desculpa. Em que medida, entretanto, o respeito à esfera privada está ligado ao respeito à liberdade individual?
Epa! Mais um truque retórico capenga: negue ou relativize que a “esfera privada” faça parte do capítulo das “liberdades individuais” e depois diga, então, que escuta telefônica não é ameaça às liberdades individuais. Não é fácil? Acho que ninguém se interessaria em grampear as conversas de Coelho. Mas, se alguém o fizer, sua primeira reação não será certamente de indignação ou raiva. No máximo, ele vai se perguntar: “Será que alguém invadiu os meus direitos individuais?”

Câmeras de monitoramento se espalham por toda parte. Aumentar seu número é até promessa de campanha dos candidatos a prefeito.
E o que uma coisa tem a ver com a outra? Câmeras de segurança em locais públicos não vigiam a individualidade de ninguém. A comparação é uma bobagem.

E como esperar que forças policiais, diante de ameaças como o terrorismo ou o narcotráfico, deixem de usar a parafernália técnica que criminosos organizados podem comprar com facilidade?
Terceiro truque: transforme a opinião do adversário em algo absolutamente estúpido e depois diga que você e contra a estupidez. Vejam como é fácil. Eu afirmo: “O combate à pedofilia não pode ser um pretexto para acabar com a privacidade na Internet”. O debatedor de má-fé pode resolver lhe chutar os países baixos: “Ah, então o senhor acredita que devemos respeitar os direitos dos pedófilos!?”. Pronto! Ele acabou de associá-lo ao nefando. Quem, afinal de contas, se opõe a que a Polícia tenha o devido aparelhamento técnico para combater o crime?

Não gostaria de saber, é claro, que minhas conversas telefônicas são grampeadas.
Que isso, Coelho? Deixe os orelhudos tomarem conta de sua vida. Privacidade nada tem a ver com individualidade, companheiro. Você não é autoridade, mas é jornalista. Sabe como são os jornalistas...

Costuma ser terrorismo a idéia do "quem não deve não teme". Tenho meus temores, como todo mundo. Mas acho que muita gente está atemorizada demais.
Ou seja, os “atemorizados demais” talvez devam alguma coisa, não é?, ou não temeriam tanto, certo? Logo, para Coelho, “quem não deve não teme”. E isso, ele definiu bem, é uma idéia terrorista. Logo...
Entendo que as coisas são diferentes: quem não deve é justamente o que mais teme. Sabem por quê? Porque, não sendo bandido, o sujeito não sabe se comportar com o sangue frio dos profissionais. Se vê sua reputação ser enlameada, indigna-se, fica revoltado, protesta.
Já o bandido profissional tem aquela gigantesca cara-de-pau. Se preciso, ele admite o crime menor para esconder o maior. Quando se vê sem saída, não tem dúvida: “Eu não sabia de nada! Fui traído”. E segue adiante.
Seja no estado policial, seja no estado em que a polícia e o órgão oficial de inteligência degeneraram numa luta de facções, quem mais tem a temer são justamente os inocentes. Vejam o caso de Daniel Dantas: sua reputação, hoje, está melhor ou pior do qeu antes? Se duvidar, ele até ganhou alguns pontinhos. E as pessoas inocentes que Protógenes atacou em seus relatórios energúmenos — e Andréa, da Folha, foi uma delas? Sobre estas, por algum tempo, haverá uma certa sombra de suspeita. Quem vai responder por isso?
Com a palavra, Marcelo Coelho, o Montaigne da grampolândia.


Por Reinaldo Azevedo

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