Wednesday, September 24, 2008

UM TEXTO LONGO E, CREIO, NECESSÁRIO. OU: LULA, IMPRENSA E AUTORITARISMO - Blog do Reinaldo Azevedo - 24/09/08

Lula parece saber tudo sobre liberdade de imprensa. Mas ele, como de hábito, não sabe nada — o que não quer dizer que seja pouco inteligente, como já observei várias vezes. O presidente é capaz de fazer discursos de aparência libertária, mas de esconder nas dobras de raciocínios um tanto tortuosos e de um domínio sempre precário da língua um viés inequivocamente autoritário. Basta que se ouça direito o que diz. Entre as muitas vozes que lhe propuseram caminhos na economia em 2003, ele acabou ouvindo as que lhe indicaram as melhores saídas. E foi beneficiado por circunstâncias que não eram de sua escolha. O PT pôde, assim, negar a si mesmo para se consolidar no poder. Sorte do país que o melhor de Lula está no anti-Lula. Já chego lá. Mais algumas considerações prévias.

As reações de uns e outros ao livro O País dos Petralhas dizem bem os tempos em que vivemos. Começou a surgir um tipo novo no blog: os candidatos a conselheiros do Reinaldo Azevedo, gente disposta a salvar a minha alma do fogo do inferno e da solidão. Como manifestação isolada, sempre houve: aqui e ali, diziam: “Não seja tão radical”; “Você ainda critica o comunismo? Que coisa mais antiga!”; “Olhe que você acaba sozinho!”; “Que pena! Até escreve bem! Mas é tão antigo!” É parte da mesma escória que não lê o blog nem leu o livro, mas entra na área de comentários da Livraria Cultura (aqui) só para me dar uma notinha baixa. Fechada a página, ele sente ter cumprido uma missão: “Pronto! Já detonei esse reacionário!” Os fariseus são agora uma corrente. E tentam me catequizar.

E o fazem atribuindo-me as coisas mais estúpidas, como a suposição de que critico o PT segundo o ponto de vista de quem lhe atribui características de um partido de esquerda tradicional, pré-Muro de Berlim. Bem, este não sou eu. Que a legenda seja caudatária de uma tradição autoritária, ah isto sim: digo e sustento. O que faço amiúde é ir buscar na história da esquerda alguns eventos que alimentaram a sua metafísica salvacionista, concedendo aos esquerdistas atuais, sejam amigos ou não do mercado (isso não me importa), a licença para a trapaça. E, se preciso, eu os desconstruo e demonstro que o demônio do totalitarismo estava na base daquelas escolhas. E pode estar presente nas opções de agora.

Mas e o PT? Sem jamais renunciar àquela metafísica, o partido foi descobrindo o seu próprio modo de ser autoritário — o que não quer dizer que não busque a inspiração em pretéritos mestres do ramo: Gramsci é, sim, a principal referência dos petistas que sabem ler. E foi o teórico comunista italiano que levou o partido a fazer uma escolha: “Primeiro vamos conquistar a democracia; o socialismo virá depois”. Hoje em dia, a perspectiva socialista, é evidente, ficou para a história. Mas isso não quer dizer que o partido renunciou à teoria de que a democracia não é um fim, mas um instrumento para o exercício do poder. Vale dizer: sua natureza continua essencialmente autoritária. E ela vai se revelando seja na soma de escândalos que aprendemos a ver como natural — relembro a história do aloprado do Banco do Brasil que acabou de ser promovido —, seja na tentativa de aprovar leis que engessam a democracia e a imprensa, aquela mesma que Lula disse que tem de ser livre. Então agora reúno os dois pilares deste artigo: as minhas reservas ao petismo, caracterizadas por certo pensamento adesista e desinformado como passadistas, e as escolhas concretas do partido e do governo — que revelam essa natureza autoritária.

O Planalto enviou ao Congresso um projeto de lei que criminaliza as fontes e os jornalistas que divulgarem informações sigilosas. Trata-se de uma estrovenga autoritária, saída da cabeça travessa de Tarso Genro. Pelo texto, se um jornalista tiver acesso a uma gravação de investigação sob sigilo, por exemplo, está impedido de divulgá-la — ou virá punição severa para ele e para a empresa em que trabalhar. E o que disse Lula ontem? "Liberdade de imprensa não pode pressupor que alguém possa roubar informações, e elas possam ser divulgadas sem que a pessoa que tenha roubado fique impune, porque senão você terá dois tipos de cidadãos no Brasil: um que estará subordinado à Constituição e à legislação e um que pode tudo".

Não resisto a observar que esses dois tipos de cidadãos já existem: há os petistas e os outros, como é notório. Adiante. Tratada a questão da maneira como ele tratou, parece tudo muito razoável, não? Nem parece que o texto de Tarso Genro viola dois artigos da Constituição, o 5º (“é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”) e o 220 (“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”).

Ainda entre o libertarismo e o acacianismo aparentes, ele avançou: “Quando eu defendo a liberdade de imprensa, é porque eu digo todo santo dia: eu sou o que sou porque no Brasil teve liberdade de imprensa, mesmo quando falavam mal de mim. Eu não quero liberdade de imprensa para falar bem, quero liberdade pra falar a verdade. Quando as pessoas não falarem a verdade, o povo fará seu julgamento". A indagação que faço não tem alcance filosófico, é bem prática: “O que é a verdade, meu senhor? Quem é que a tem na coleira e a leva para passear?” Seria o próprio Lula? Seria Franklin Martins, com a sua ridícula Lula News? A propósito: Lula e Franklin negam até hoje que o mensalão tenha existido. No entendimento que ambos têm da verdade, aquilo não aconteceu. Atenção: Lula acredita (ou finge) — como sempre o fizeram as esquerdas e todos os autoritários, esquerdistas ou não — que existe “a” verdade. E suponho que ela seja íntima do partido que pretende falar em nome da maioria.

Mas ele foi adiante. Estava excitado ontem. Não é todo dia que se tem a chance de dar um pito no Jorgibúxi e ensinar ao mundo como se governa. Leiam um trecho do Estadão On Line: “Ao Estado, o presidente Lula reiterou que, no caso do grampo que revelou a conversa do presidente do Supremo, Gilmar Mendes, com o senador Demóstenes Torres (DEM-TO), o problema da quebra do sigilo seria facilmente resolvido se o jornalista que escreveu a matéria contasse quem lhe deu a informação. ‘Era fácil encontrar, saber quem fez o grampo, se o jornalista que fez a matéria dissesse quem é o cara’, disse Lula, acrescentando que, se isso ocorresse, ‘livrava todo mundo’.”

Estupidez! “Livrava todo mundo quem, cara pálida?” Lula sempre foi a mais perfeita encarnação da famosa frase do jornalista americano H. L. Mencken (não vou procurar a citação exata; vocês acham com facilidade): “Todo problema complexo tem sempre uma solução simples, clara e errada.” O jornalista não tem de “livrar” a cara de ninguém. Sua única obrigação é publicar o que apura. E tenho uma outra novidade para este senhor: a reportagem não é um braço da polícia. Os órgãos se segurança do estado não se tornaram essa barafunda por acaso. Houve um partido que foi lá fazer mexericos e fuxicos, aparelhando órgãos que devem ser, acima de quaisquer outros, estritamente técnicos. A transcrição do grampo, cujo conteúdo foi confirmado pelos grampeados, saiu da Abin. O governo Lula que se vire para descobrir e punir os responsáveis. Quem pariu Mateus agora deve embalá-lo, especialmente na fase em que os monstrinhos fugiram do controle.

Ocorre que, para admitir este ponto de vista — e, eventualmente, para entendê-lo —, é preciso acatar a democracia como um fim em si mesmo, não como um meio: - dêem um pé no traseiro dos perniciosos que afirmarem que o objetivo da democracia é fazer justiça; - cuspam na moral do larápio que afirmar que a finalidade da democracia é garantir a igualdade; - faça como Augusto dos Anjos recomendava que se fizesse em certas bocas quando dizem que o sentido da democracia é a inclusão social. Isso tudo não passa de tramóia diversionista de quem pretende relativizar o regime de liberdades públicas, usando como cunha a agenda ou de supostas minorias influentes ou de maiorias de ocasião.

O governo Lula está tentando responder à desordem dos aparelhos de segurança do estado censurando a imprensa. É inaceitável! E inconstitucional! E, sim, continuarei a bater nessa gente por isso e a mostrar a genealogia de suas idéias. Antigo, antigo mesmo, no Brasil, é oferecer o lombo para o chicote.


Por Reinaldo Azevedo

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