Thursday, November 01, 2007

Caco Barcelos e os cacos do humanismo. Ou: "Ele quer presunto de primeira" - Blog do Reinaldo Azevedo - 01/11/07

Se um dia um esquerdista fosse desidratado, liofilizado, para, eventualmente, só ganhar corpo na hora do consumo, como essas sopas que se vendem em supermercado, ele ficaria com a cara e o jeito de Caco Barcelos, o repórter da TV Globo, também um tanto metido a orientador dos moços, com seus “jovens repórteres”. Ele concede uma entrevista à revista VIP que tem momentos verdadeiramente asquerosos. O bom-mocismo de Barcelos é só um biombo onde se esconde a mistificação — e, às vezes, a mentira descarada.

Mas ele não está sozinho. A entrevista, conduzida por Claúdia de Castro, está mais para uma ação entre amigos. Não importa o que o entrevistado diga, ela concede e, às vezes, reforça. No bate-papo entre ambos, as contradições são sempre alheias. Sim, é a fala de quem fez carreira demonizando a polícia. Noto ainda que Barcelos é convocado a falar num movimento bem maior: os “descolados”, sempre atentos ao que o “povo” deseja, decidiram, desta vez, que ele está errado. O vulgo acerta quando elege Lula, mas erra quando aprova Tropa de Elite. Vocês sabem: desde Stálin, o povo precisa é de um guia genial que lhe diga o que fazer. Seguem trechos da entrevista em vermelho, com intervenções minhas em azul.

VOCÊ ASSISTIU A TROPA DE ELITE?
Ainda não consegui ver inteiro. Mas vi uns pedaços e estou acompanhando a repercussão.E ESTÁ ACHANDO O QUÊ?
Acho interessante que as pessoas estejam falando sobre isso. Houve um tempo em que o país não discutia mais sobre segurança pública. Acho interessante que todo mundo tenha uma opinião a respeito disso. Mas a minha preocupação é no sentido de estarem enxergando o personagem central (Capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura) como um herói. E também me preocupo com o fato de ninguém ter discutido ainda as mortes provocadas pelo Bope (Batalhão de Operações da Polícia Especial do Rio de Janeiro). Muito está se falando sobre os métodos de atuação da polícia, sobre as torturas, o que é gravíssimo. Mas ninguém fala o essencial, que é a matança provocada pela polícia nessa área pobre da cidade. Como é o Bope quando atua no Leblon, em Ipanema? Usam aquele saco plástico na cabeça de alguém? Você conhece algum rico que foi morto pelo Bope?NÃO, NUNCA OUVI FALAR.
Pois é. Em 30 anos de jornalismo, eu também nunca ouvi uma história assim. Nunca ouvi uma história sobre algum rico criminoso que tivesse sido morto por essa unidade especial da polícia. Se omitirmos esse dado, a discussão não é honesta. Veja que Tropa de Elite é um filme de ficção, o diretor tem toda a liberdade para tratar do que quiser na obra dele. Não quero que pareça que estou fazendo uma crítica ao filme. Mas é triste saber que a sociedade está escolhendo um matador para herói.
Trata-se de um juízo delinqüente, compartilhado docemente pelos dois jornalistas. Se o Bope também matasse ricos, supõe-se que a sua atuação estaria, então, marcada por certo equilíbrio, por certo senso de justiça. Observem que o norte moral, então, não está em matar ou não matar, mas na conta bancária do morto. É uma avaliação nojenta. Mais: a ação do Bope é especialmente voltada para o crime que se incrustou nas favelas. Na formulação de Barcelos e de sua entrevistadora, não existe diferença entre “pobre” e “traficante”.

E O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM ESSA SOCIEDADE?
Isso é muito antigo. A verdade é que as autoridades nunca utilizaram no Brasil o que há de mais inteligente e democrático na política de segurança pública. Muito se criticam os direitos humanos, as ONGs, mas nunca nenhuma das idéias, das propostas das pessoas que querem que as pessoas sejam respeitadas independentemente de sua condição econômica foram aplicadas. Desde o Brasil colônia, a polícia está aí para defender os interesses dos mais endinheirados. Desde sempre a sociedade legitimou ações brutais contra aqueles desprovidos de poder, seja econômico, seja político, aqueles desprovidos de cidadania. Se a brutalidade fosse interessante, a Rota já teria transformado São Paulo em um paraíso.
Eis aí. É a tese de que a polícia só está a serviço do arranca-rabo de classes. Sempre que ela atua, é contra os pobres. São Paulo não é um paraíso, mas se mata no estado quase um terço do que se mata no resto do país, um quarto do que se mata no Rio, um quinto do que mata em Pernambuco. Os esquerdistas não vão reconhecer isso jamais, não é? Ah, sim: não “está a acontecer” nada de errado com esta sociedade, moça. Ela apenas se cansou da conivência entre o pensamento politicamente correto e os bandidos.

O QUE MUDOU ENTRE ROTA 66 E TROPA DE ELITE?
Muita coisa. A Rota fez escola, o Bope. Mas tem anos que a polícia de São Paulo mata muito menos. Eram 1 500 pessoas em 1992, quando lancei o livro. Esse número baixou para 300. Mas a criminalidade de São Paulo não se alterou. Na verdade, a única coisa que mudou foi a redução no número de homicídios. É óbvio que, quando a polícia mata menos, a sociedade fica menos violenta. Em São Paulo, mais de 10% dos crimes de homicídio são praticados pela polícia. No Rio, esse número é mais alto, mais de 20%. Bastaria uma ação pública eficaz para que houvesse a redução do crime mais grave, que é o crime de morte.
Trata-se de uma mentira deslavada. O número de homicídios em São Paulo caiu quase 70% em oito anos. E não porque a policia mate menos, mas porque há mais homicidas na cadeia. Por que Barcelos não reconhece? Lanço duas hipóteses que se combinam: a) porque não vai reconhecer méritos nos que considera seus inimigos: os policiais; b) porque precisa manter o mercado mental da violência para poder vender os seus produtos ideológicos.

EXISTE DIFERENÇA ENTRE AS POLÍCIAS MILITARES DE SÃO PAULO E DO RIO?Nenhuma. Por que, por exemplo, a Polícia Federal, que é bem treinada, bem remunerada e trabalha com inteligência, não precisa provocar sequer um arranhão em uma pessoa? Elas têm seus direitos respeitados. É o mesmo país, a mesma realidade e essa polícia é eficaz. A brutalidade é incoerente. Mas investigação dá trabalho...
Mistificação! Fraude intelectual! A Polícia Federal não sobe morro, não vai à periferia, onde se acoita o criminoso que atira, a esmo, para matar. Para que a comparação de Barcelos, aceita bovinamente pela interlocutora, fizesse algum sentido, seria preciso que ela passasse a atuar nas mesmas praças onde atuam as PMs e a polícias civis do Rio ou de São Paulo, por exemplo. Tenho uma outra questão para Barcelos e sua entrevistadora: das pessoas presas pela PF, quantas estão em cana? Ao afirmar que “investigar dá trabalho”, ele faz tábula rasa das polícias boa e má. A propósito: impedir a entrada de armas no país é tarefa da PF. E ela não cumpre. Bem como reprimir a entrada de drogas, já que o Brasil não produz cocaína. Como a PF, de que Barcelos tanto gosta, trabalha mal, sobra serviço para as outras polícias, que ele tanto detesta. Desafio-o a provar que estou errado.(...)

VOCÊ FREQÜENTOU DURANTE MUITO TEMPO AS FAVELAS DO RIO PARA ESCREVER ABUSADO. COMO A COMUNIDADE VÊ A POLÍCIA MILITAR?
De forma geral, a Polícia Militar do Rio de Janeiro representa o autoritarismo sem autoridade. As pessoas não têm seus direitos mínimos respeitados nas ações dos policiais nos morros. A violência está dos dois lados na favela, claro: na polícia e no tráfico. Essa história é uma loucura. Um tiro de fuzil é capaz de atravessar sete barracos de alvenaria. E atrás de traficante pode ter uma criança de 5 anos, uma senhora de 80. Mas para as autoridades quem mora no morro é bandido. E é evidente que não é assim, a maioria é formada por trabalhadores. E são todos bem informados. A sociedade não é partida como se diz. É partida só para os bacanas.
COMO ASSIM?
Quem é pobre e mora no morro tem duas vias. Ele desce para trabalhar. A gente que não sobe lá nunca para ver o que acontece, como deveríamos fazer. Conversei muito com os traficantes: quase todos têm a mãe empregada doméstica, o pai porteiro. Eles conhecem bem a vida na zona sul. No trabalho deles, dentro da casa dos bacanas, eles nunca viram a polícia agir da mesma forma. Um médico quando não emite nota fiscal numa consulta está roubando não só de uma pessoa, está roubando de todo mundo. É um crime gravíssimo. Por que o Bope não invade o consultório para ouvir uma confissão do médico que está sonegando? Fica esta pergunta: “Por que é legítimo agir com brutalidade em uma parteda cidade, não por coincidência onde estão os mais pobres, e não agir da mesma forma onde estão os ricos”?
Demagogia barata. Quem deve autuar o médico e atuar, então, para mandá-lo para a cadeia é a Receita Federal. Na formulação de Barcelos, jamais a Polícia subiria o morro enquanto houvesse um sonegador no asfalto. Por mais que pareça simpático comparar um sonegador a um traficante, são crimes que se combatem de forma diferente. Aqui, na Suécia ou em Cuba — quer dizer, em Cuba, não, porque, lá, o sonegador, o traficante e a polícia são todos uma homem só...(...)

A COMUNIDADE TEME MAIS A POLÍCIA DO QUE OS TRAFICANTES?
O que eles se queixam muito é da morte de inocentes, da criança de 9 anos, do jovem, gente potencialmente não envolvida com o tráfico. Digo potencialmente porque as ações não são feitas com pesquisa. É aleatório. “Eu acho que é aquele ali.” Agora, acreditar que uma criança de 5 anos está envolvida com isso? Eu prefiro não. Prefiro acreditar que as pessoassão inocentes até que se prove o contrário.
“Comunidade” é o escambau!!! Comunidade é linguagem de traficante adotada por jornalistas. Existem indivíduos nas favelas. A maioria formada de trabalhadores. Uma minoria, de traficantes. A pergunta também é truque. A essa altura da conversa, a resposta era óbvia. E quem é que defende que crianças de 5 anos sejam atingidas pela polícia? Barcelos é o Robert Fisk (pesquisar) dos pobres. De tanto “cobrir” o conflito, apaixonou-se pelos criminosos. Procure um miserável texto de Fisk em que os israelenses sejam vítimas. Nunca! Vítimas são apenas os terroristas palestinos, que lhe fornecem a versão dos fatos. Assim como Barcelos trabalha com a versão do tráfico. O Hamas e o Hazbollah usam crianças como escudo. Os traficantes brasileiros também.


QUAL SUA POSIÇÃO NA QUESTÃO DA LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS?
Não tenho opinião. Eu sou a favor de que as pessoas discutam isso. O quadro como está é muito ruim, e não discutir o problema é defendê-lo, é desejar a permanência dessa situação. Isso tem de ser discutido sem hipocrisia. Pessoas de todas as camadas sociais são usuárias de drogas, as ilegais e as legais. Há drogas legais que causam mais danos que as ilegais. É uma mudança complexa, que envolve questões bilaterais. Nossa discussão tinha de começar pela cachaça. É uma droga legal. E mata.
É a falácia de sempre. É claro que ele não quer criminalizar a cachaça, mas descriminar a droga.

UMA DAS CENAS DE TROPA DE ELITE MOSTRA O CAPITÃO NASCIMENTO ESFREGANDO O ROSTO DE UM RAPAZ NO CADÁVER QUE ELES HAVIAM ACABADO DE MATAR. E DIZENDO QUE O CULPADO POR AQUILO ERA O RAPAZ, O MACONHEIRO.?
O culpado pela morte é quem mata. Parece soldado americano falando no Iraque: “Te mato porque quero seu petróleo, você é culpado por sua morte”.
Em primeiro lugar, o culpado é o maconheiro. Já o juízo de Barcelos sobre a guerra do Iraque é só ignorância misturada com ideologia. Comecemos pelo fato óbvio de que a maioria dos iraquianos mortos é obra de... iraquianos, não de americanos. Mas aqui o homem é pego no pulo. Ele foi feito refém dos sandinistas na revolução da Nicarágua. Como foi posto pra suar pelos comunas, reparem na sua resposta quando trata do assunto.
(...)

VOCÊ JÁ FOI REFÉM DE SANDINISTAS, FOI DADO COMO DESAPARECIDO EM UMA SELVA BOLIVIANA, FOI AMEAÇADO DEPOIS DE ESCREVER LIVROS. EM ALGUMA SITUAÇÃO VOCÊ PENSOU REALMENTE: “AGORA DANOU-SE”?
Teve uma situação na Nicarágua, durante a guerra (Caco cobriu a vitória dos sandinistas em 1979). Eu estava sozinho, perto de franco-atiradores. Para eles, o alvo era qualquer um. O cara me localizou da torre de uma igreja. Foi um horror aquilo ali, eu me arrastando pelo chão, fugindo das balas. Não sabia nem de onde vinham os tiros. Era curioso. Eles atiram sem nenhum motivo, nem tinham idéia de quem eu era, se eu era um guerrilheiro, podia ser também um franco-atirador sandinista. Foi muito estúpido. Mas guerra é assim.
Viram só? Os americanos são dolosos. Já os sandinistas apenas se vergaram à lógica da guerra. Ele prefere não criticar.
(...)
AGORA VOCÊ TRABALHA COM UMA TURMA NOVA NO JORNALISMO. COMO É ESSA EXPERIÊNCIA?
É um pessoal que, embora em começo de carreira, está revelando uma paixão muito grande pela reportagem. Eu sempre achei que as histórias ficam muito mais atraentes quando seguem o caminho da reportagem. É legal oferecer para o telespectador as ações comoprovas de que as coisas que estamos falando são verdadeiras. A reportagem oferece a possibilidade de acompanhar as histórias, ouvir todos os lados.
Considero esse papo um pouco enjoado. Olhem aqui: fiz reportagens algumas raríssimas vezes. Não chega a ser assim tão difícil. Opinar é bem mais complicado — embora, claro, pese sobre quem vive disso a acusação de que não tira o traseiro da cadeira. Que eu saiba, nao se pensa com os pés ou com o traseiro. Há muita mistificação sobre a reportagem — obviamente essencial no jornalismo. A maior delas é a de que tem um compromisso essencial com a neutralidade, com a imparcialidade. Besteira! Expressa uma opinião, um ponto de vista, como qualquer outro texto. A rigor, pode ser até mais manipuladora. Afinal, de uma opinião, as pessoas se defendem com mais facilidade. E, claro, também pode ser exemplarmente honesta. Então Barcelos não venha com essa conversinha de “o” repórter que conta apenas aquilo que vê.

A sua entrevista evidencia que ele tem um jeito muito particular de ver o mundo, o que, é claro, vai parar no seu trabalho. Vocês não precisam acreditar em mim. Leiam a íntegra da entrevista aqui se quiserem. Observem que entrevistado e entrevistadora, em nenhum momento, voltam o dedo acusador para os bandidos e o narcotráfico. Estão unidos no combate a um inimigo: a polícia — e, secundariamente, é indisfarçável, o filme Tropa de Elite.

A entrevista é parte da ação encetada pelos reacionários. O morro mental no Brasil estava ocupado pelos traficantes de “direitos humanos”, ainda que isso significasse manter a população refém dos bandidos, pobres “vítimas” das perversidades do capital. Quem sabe a polícia leia Caco Barcelos e passe a dar uns pitocos em alguns ricaços... Aí se fará, então, justiça de classe ao menos, certo? O corolário de sua entrevista, não adianta negar, é óbvio: com alguns ricos mortos pela Polícia, haverá um pouco mais de justiça.

PS: A VIP publicava ensaios de algumas gostosas, não? Publica ainda? Faz muito tempo que não leio. Bem, sempre será melhor uma mulher pelada do que Caco Barcelos a nu.
Por Reinaldo Azevedo

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