Monday, December 01, 2008

PEÇO DESCULPAS A SARAMAGO. NÃO SABIA DE SUA DOENÇA. E UM VERMELHO-E-AZUL - Blog do Reinaldo Azevedo - 30/11/08

A Folha trouxe ontem um texto com declarações do escritor português José Saramago que não haviam sido publicadas na versão eletrônica do jornal no dia anterior. E essas novas informações me obrigaram a pedir desculpas a Saramago pelas críticas que lhe dirigi. Achei — de modo errado, apressado, desinformado — que as tolices que ele dizia decorriam, sei lá, da sua ideologia, de escolhas conscientes, até mesmo da disposição para chocar a audiência. Não! Trata-se de uma doença. Ele nos conta: “Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista”.

Meu clínico geral é também endocrinologista. Liguei pra ele:
— Jairo? Reinaldo.
— Eu sei.
— Tudo bem?
— Até agora...
— Tenho uma dúvida.
— O que é desta vez? (não sei se transmiti um certo tom de impaciência contida no meu médico; é que tenho a mania de discutir medicina com ele, entendem? Sempre discuto tudo...)
— Não, não tem nada a ver comigo, não...
— Huuummm... Melhor assim. Pra você ao menos.
— Não vá estranhar a pergunta.
— Você sabe que, na minha profissão, eu nunca estranho nada.
— Sei, não sou seu único maluco com mania de médico, né?
— É, não é. Todo mundo agora fez a faculdade de medicina Dr. Google.
— Ah, não! Eu já lia bula muito antes.
— É, infelizmente. Mas diga lá.
— Escute, comunismo hormonal tem cura?
— Eu sei que você não usa drogas, mas gosta de um uisquinho de vez em quando. Você andou bebendo?
— Não, eu não. Mas acho que o Saramago...
— Saramago?
— É, o escritor...
— Eu sei quem é Saramago, Reinaldo. O que tem ele?
— Ele disse que é um comunista hormonal.
— ...
— Alô?
— Estou aqui. Comunista hormonal?
— É...
— E daí?
— Isso tem cura?
— Não!
— Não?
— Não!
— E aí? O que fazer nesses casos?
— Ah, só administrando Haldol para amansar o doente.
— É sério? Mesmo num comunista hormonal?
— Especialmente nesse caso. O Haldol é bom para controlar alucinações.
— Hannn... Obrigado!
— Imagina! É supernormal alguém me ligar às, deixe-me ver, 2h10 para me fazer uma pergunta como essa.
— Desculpe-me. É que, a essa hora, só estamos acordados eu, o Jô Soares e o Serra...
— E eu, né?
— Ah, perdão! É que eu estava angustiado. Cometi uma injustiça com ele.
— Com quem?
— Com o Saramago.
— Ih, desencane! Ele nem vai ficar sabendo.
— Ah, isso não importa. E a minha consciência?
— Reinaldo, isso é com outro médico ou com o padre... Depois você me conta. Posso voltar a dormir?
— Ah, claro, boa noite!

Bem, vamos ao texto publicado pela Folha no sábado. Segue em vermelho. Faço intervenções em azul. Jamais um indivíduo que flerta com o extermínio de seres humanos — só os maus, claro! — foi tratado com tanta, como direi?, delicadeza.

O ESCRITOR português José Saramago, 86, disse ontem que "a história da humanidade é um desastre" e que "nós não merecemos a vida". O autor, vencedor do Nobel de Literatura em 1998, participou de sabatina da Folha em celebração dos 50 anos da Ilustrada. O debate, assistido por 300 pessoas em um Teatro Folha lotado, teve como mediador o secretário de Redação do jornal Vaguinaldo Marinheiro. Participaram também, como entrevistadores, o crítico Luiz Costa Lima, a repórter da Ilustrada Sylvia Colombo e Manuel da Costa Pinto, colunista do caderno.

HUMANIDADE
A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público.

Saramago não é o primeiro comunista a achar que a humanidade não tem direito à vida. Antes dele:
- Stálin também achava: matou 35 milhões;
- Mao Tse Tung também achava: matou 70 milhões;
- Pol Pot também achava: matou 3 milhões;
- Fidel Castro também achava e acha: matou 97 mil (numa ilhota que hoje tem 11 milhões de habitantes).

E os comunistas mataram em escala industrial, mundo afora, com o apoio hormonal de Saramago.

Imagine, leitor, se o escritor português fosse um cara de direita e dissesse o que vai acima. Em vez do tratamento de gala que lhe é dispensado, com salamaleques e rapapés, pediriam que fosse expulso do Brasil. Na prática, este velhinho, um delinqüente intelectual, está pedindo o extermínio dos seus inimigos em nome da “humanidade” — que é rigorosamente o que fizeram os seus ídolos, acima elencados.
Ah, claro, claro. Saramago faz a apologia da morte, mas dirão que o truculento sou eu. Truculento e arrogante, é óbvio.

MARXISMO HORMONAL
Desde muito novo orientei-me para a consciência de que o mundo está errado. Não importa aqui qual foi o grau da minha militância todos esses anos. O que importa é que o mundo estava errado, e eu queria fazer coisas para modificá-lo. O espaço ideológico e político em que se esperava encontrar alguma coisa que confirmasse essa idéia era, é claro, a esquerda comunista. Para aí fui e aí estou. Sou aquilo que se pode chamar de comunista hormonal. O que isso quer dizer? Assim como tenho no corpo um hormônio que me faz crescer a barba, há outro que me obriga a ser comunista.
Pouco a dizer além do que já disse. Então é mesmo doença. Poucos se dão conta de que essa visão autoritária, tirana mesmo, de mundo, está presente também na sua literatura. Saramago acredita que um partido tem de ser o olho dos cegos. Lixo político e moral.

CRISE ATUAL
Marx nunca teve tanta razão quanto agora. O trabalho constrói, e a privação dele é uma espécie de trauma. Vamos ver o que acontece agora com os milhões de pessoas que vão ficar sem emprego. A chamada classe média acabou. Ou melhor: está em processo de desagregação. Falava-se em dois anos [para a recuperação da economia depois da crise financeira]; agora já se fala em três. Veremos se Marx tem ou não razão.
Por que ele fala tanta porcaria? Tenho lembrado, sabem os leitores, nos eventos de O País dos Petralhas, país afora, que o tão satanizado “modelo neoliberal” tirou mais pessoas da miséria em 20 anos do que os 200 anos anteriores do capitalismo. Marx não tem uma só linha que sirva para explicar a crise moderna. Por que alguém não lhe perguntou de que livro ele está falando ou a que trecho da obra marxiana ele se refere? É uma pergunta que a Folha de 20 anos atrás faria.

DEUS E BÍBLIA
Por que eu teria de mudar [a concepção de Deus após a doença]? Porque supostamente me salvou a vida? Quem me salvou foram os médicos e a minha mulher. E Deus se esqueceu de Santa Catarina? Não quero ofender ninguém, mas Deus não existe. Salvo na cabeça das pessoas, onde está o diabo, o mal e o bem. Inventamos Deus porque tínhamos medo de morrer, acreditávamos que talvez houvesse uma segunda vida. Inventamos o inferno, o paraíso e o purgatório. Quando a igreja inventou o pecado, inventou um instrumento de controle, não tanto das almas, porque à igreja não importam as almas, mas dos corpos. O sonho da igreja sempre foi nos transformar em eunucos. A Bíblia foi escrita ao longo de 2.000 anos e não é um livro que se possa deixar nas mãos de um inocente. Só tem maus conselhos, assassinatos, incestos...
É possível fazer contraposições inteligentes e civilizadas à Igreja Católica e a Deus. As de Saramago são coisas de um ateu vulgar — a mesma vulgaridade anti-religiosa e boçal de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. O que me incomoda acima não é seu ateísmo, mas a sua tolice tagarela. Saramago não precisaria acreditar em Deus para entendê-lo, ao menos, como um dado da realidade cultural e da experiência espiritual. No caso de Santa Catarina, Deus pode estar, por exemplo, na determinação que leva aquelas pessoas a recomeçar do zero. E no cuidado com que oram por seus mortos. A fé que nos tira da desesperança e da morte em vida será sempre libertadora. Reconhecê-lo não é, sr. Saramago, matéria de crença, mas de atenção aos muitos matizes da vida humana.

RELAÇÃO COM PORTUGAL

Espalham por aí idéias sobre minha relação com meu país que não estão corretas. Saímos [Saramago e sua mulher, Pilar] de Lisboa [para a ilha de Lanzarote] em conseqüência de uma atitude do governo, não do país nem da população. Mas do governo, que não permitiu que meu livro ["O Evangelho Segundo Jesus Cristo"] fosse inscrito num prêmio da União Européia. Nunca tive problemas com o meu país, mas com o governo, que depois não foi capaz de pedir desculpas. Nisso, os governos são todos iguais, dificilmente pedem desculpas. Fomos para lá e continuamos pagando impostos em Portugal. Agora temos duas casas. Mudei de bairro, porque o vizinho me incomodava. E o vizinho era o governo português.
Ah, esperar o quê, não é? Vocês sabem, também o governo português pertence à horrível humanidade... De todo modo, há uma falha lógica na argumentação. Se o governo português não é Portugal, deixar Portugal porque se indispôs com o governo português é tomar um pelo outro, justamente o que ele diz não fazer.

ACORDO ORTOGRÁFICO
Em princípio, não me parecia necessário. De toda forma, continuaríamos a nos entender. O que me fez mudar de opinião foi a idéia de que, se o português quer ganhar influência no mundo, tem de adotar uma grafia única. Se Portugal tivesse 140 milhões de habitantes, provavelmente teríamos imposto ao Brasil a nossa grafia. Acontece que os 140 milhões estão no Brasil, e o Brasil tem mais presença internacional. Perderíamos muito com a idéia de que o português é nosso, nós o tornaríamos uma língua que ninguém fala. Quando acabou o "ph", não consta que tenha havido uma revolução.
O acordo é uma tolice porque, de fato, são duas línguas muito parecidas, mas diferentes. E matizes são tudo o que deveria interessar a um escritor. E, bem, só mesmo um comunista para transformar a maioria num argumento “de autoridade”. De resto, somos quase 190 milhões, não 140...

LITERATURA BRASILEIRA
Houve um tempo em que os autores brasileiros estavam presentes em Portugal, e em alguns casos podíamos dizer que conhecíamos tão bem a literatura brasileira quanto a portuguesa. Graciliano Ramos, Jorge Amado, os poetas, como João Cabral [de Melo Neto], Manuel Bandeira, essa gente era lida com paixão. Para nós, aquilo representava a voz do Brasil. Agora, que eu saiba, não há nenhum escritor brasileiro que seja lido com paixão em Portugal. Culpo a mim, talvez, por não ter a curiosidade. Mas também não temos a obrigação de descobrir aquilo que nem sabemos se existe.
Nada a comentar. A não ser o fato de que o período final, de foi realmente dito dessa maneira, não faz nenhum sentido. É uma tentativa frustrada de paradoxo.

LEITOR
O leitor me importa só depois que escrevi. Enquanto escrevo, não importa, porque não se escreve para um leitor específico. Há dois tempos, o tempo em que o autor não tinha leitores e o tempo em que tem. Mas a responsabilidade é igual, é com o trabalho que se faz. Agora, eu penso nos leitores quando recebo cartas extraordinárias. É um fenômeno recente. Ninguém escreveu a Camões, mas hoje há essa comunicação, essa ansiedade do leitor.
Do que publicou a Folha, é o único trecho que se aproveita.

"Em nome de todos os brasileiros, obrigada por existir", disse alto, ao final da sabatina, uma integrante da platéia, enquanto Saramago terminava de falar.
Uma pinóia! Não fale em meu nome, não, ô mané! Posso imaginar o que pensa esse brasileiro entusiasmado. Quando Saramago afirmou que o homem não tem direito à vida, ele deve ter vibrado e pensado: “É verdade!”

É claro que ele não imagina que a prescrição do “sal amargo” possa valer para si mesmo, não é? Cabe só aos outros. Quando o escritor afirmou o seu “comunismo hormonal”, o entusiasmado deve ter sentido, como direi?, uma espécie de ereção anímica. “É isso! Esse frêmito que me toma às vezes e essa vontade de eliminar os que discordam de mim vêm daí: do comunismo hormonal, que também me abrasa!”.

Já posso ouvir daqui o alarido dos indignados e as contraposições daqueles que dirão que estou a confundir as coisas, tomando o comunista pelo escritor... É mesmo? Aos primeiros, recomendo banho frio. E se fosse um pensador conservador a afirmar que a humanidade não merece a vida? Aos outros, observo que Saramago, acima, não fala sobre literatura, mas sobre política, ideologia e religião — sempre destacando, de todo modo, que também a sua literatura não me agrada, seja na forma, seja no norte moral.

E há algo de notável em sua trajetória: na maioria dos homens, a idade costuma amansar os defeitos à medida que, mais sábios, domam a vaidade. Saramago só piora com o tempo. Como escritor e como pensador. De resto, só alguém pautado pela mais absoluta amoralidade põe em dúvida o direito que a humanidade tem à vida e ainda permanece vivo, o que é uma escolha. Das duas, uma: ou é covarde ou se considera acima da humanidade que condena. E que lugar é esse? Ora, acima dos homens, só mesmo Deus. É isto: Deus está morto, viva Saramago!


Por Reinaldo Azevedo

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