Wednesday, July 02, 2008

O real e o abstrato - Ilan Goldfajn - Site www.e-agora.org.br - O Globo - 01/07/08

Ilan Goldfajn, O Globo
(01/07/08)


A preocupação a curto prazo é a inflação, sem dúvida. Mas o risco maior para o crescimento a médio e longo prazos situa-se numa outra esfera. Melhor explicar com frases que ilustram o ponto. O ministro de Minas e Energia afirmou que "não se cogita absolutamente mudar os contratos existentes. Estamos sendo absolutamente generosos", e "na medida em que as empresas apenas estejam auferindo lucros em demasia, deveremos rever essa situação, em benefício de todos" ("Valor Econômico", 27/06). Comentava sobre os "contratos" de exploração de petróleo e o desejo do governo de criar mais uma estatal para a nossa vasta coleção. Os "lucros em demasia" a serem revertidos são no setor de mineração.

O ministro reflete um conflito que transcende a sua área de atuação: os contratos assinados viraram um incômodo, e o seu respeito visto como uma generosidade dos atuais dirigentes. A construção institucional feita no passado - respeito a contratos, regulação via agências do Estado e menos intervencionismo - mede forças contra o desejo atual de controlar, dirigir, estatizar. O cerne do debate sobre o crescimento futuro vai se concentrar nesse ponto: haverá liberdade e facilidade para produzir, investir, arriscar e gerar valor no Brasil?

No debate macroeconômico fala-se claro e bom som da necessidade de resolver os gargalos da economia (ou seja, desobstruir os impedimentos à elevação da produção a médio prazo), de aumentar a oferta disponível para não ter que desacelerar a demanda e de incentivar as exportações. No dia-a-dia, a clareza macroeconômica cede lugar a uma combinação cinzenta de ideologias e interesses.

A discussão dos portos é emblemática. Há um visível esgotamento da capacidade portuária no Brasil com o bem-vindo aumento do comércio exterior. Mas existem limites orçamentários para aumentar os investimentos públicos no setor. Como em outras áreas, o progresso vai depender da capacidade de atrair para o setor capitais privados que estejam dispostos a correr o risco do investimento em troca da expectativa de um retorno futuro. O governo tem que ser capaz apenas de mostrar estabilidade macroeconômica e regulatória (manter as regras que ele mesmo estabeleceu) e reduzir os entraves burocráticos a novos investimentos. Mas não é isso o que acontece.

Há interferência na decisão econômica que deveria ser dos que atuam no setor. Não me refiro aqui à regulação necessária na economia. Afinal, há bens públicos a defender, como o meio ambiente ou o combate à barreira a entradas de novos concorrentes para evitar a formação de cartéis e monopólios. Isso já existe com as diversas agências reguladoras montadas no passado (e sendo enfraquecidas desde então). Nesse caso dos portos, interfere-se arbitrando que a existência de portos estritamente privados tenha que ser justificada apenas com sua carga própria, mesmo que o porto venha também a ser utilizado por terceiros, o que reduziria os custos operacionais pelos ganhos de escala. Ou seja, coloca-se um entrave, cujo custo é claro (retrai investimentos), e o beneficio coletivo duvidoso (qual é o ganho para o cidadão?).

O irônico é que no momento em que a realidade impera e sinaliza-se que se "aceita" remover esse obstáculo (afinal, quem não quer mais investimentos?), a ideologia e o desejo de controle imperam, e o governo anuncia que, como contrapartida, pretende requisitar plano de outorgas e licitar todos os novos portos, mesmo os privados. Ou seja, se alguém quer investir em portos, vai caber ao governo decidir se é viável e/ou desejável. Por trás dessa iniciativa está um conflito comum hoje no governo: o desejo da nova Secretaria Especial dos Portos (criada para acomodar conflitos políticos) de dirigir e decidir sobre o setor, para além da regulação exercida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ). Essa nova exigência deve atrasar e/ou desestimular os novos investimentos. Enquanto isso, continuaremos a debater em público, em abstrato, sobre os gargalos da economia e por que o Brasil não consegue crescer mais, sem gerar inflação.

ILAN GOLDFAJN é professor da PUC. E-mail: goldfajn@econ.puc-rio.br

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