Monday, July 16, 2007

Ódio à liberdade alheia - Blog do Reinaldo Azevedo, 16/07/2007



Os petistas odeiam a liberdade. Dos outros.Quem, como eu, tinha 21 anos quando o partido disputou a sua primeira eleição importante — a do governo de São Paulo, com Lula — sabe que o PT foi quem introduziu (na verdade, reintroduziu) o humor nas disputas eleitorais. Vivíamos sob um regime de exceção, uma ditadura mitigada, mas ditadura ainda assim. A cara das campanhas eleitorais era a da Lei Falcão: os santinhos congelados na TV, com uma voz em off lendo a sua biografia. E não qualquer biografia. Em 1978, a referência à aposentadoria compulsória de FHC determinada pelo AI-5 foi vetada. Ele concorria a senador na sublegenda do MDB. Franco Montoro foi eleito, venceu a disputa para o governo de São Paulo em 1982, e aquele que viria ser presidente da República por oito anos assumiu a sua vaga no Senado. O PT percebeu que a irreverência, contrastando com sua pregação socialista então iracunda, era um bom caminho para falar aos trabalhadores, aos estudantes, àqueles que haviam se acostumado com a política mui vetusta dos militares.Com a chegada da propaganda eleitoral gratuita, o partido foi investindo mais e mais em marketing — com freqüência, contou com o trabalho voluntário de publicitários. Observem: não estou aqui fazendo necessariamente a defesa da disputa política como guerra publicitária. Não! Estou procedendo a uma pequena memória histórica: o PT sempre foi mestre em apelar ao humor para transformar seus adversários políticos numa caricatura. E, reitero, chegou a fazê-lo ainda durante o regime militar — não porque lhe sobrasse coragem, mas porque a ditadura brasileira já estava moribunda.É o representante máximo desse partido, ninguém menos do que o presidente da República, quem pede a uma empresa — no caso, a Peugeot — que retire do ar uma propaganda que faz uma brincadeira bem-humorada com a ministra do Turismo, Marta Suplicy. Convenham: o rapaz que encarna a personagem (vejam abaixo) é engraçado, jamais agressivo; é galhofeiro, simpático e, já que recomenda a compra de um automóvel, tem de conquistar a simpatia do espectador. É o exato oposto de Marta, especialmente depois da frase infeliz do “relaxa e goza” (ver filme acima).Se a propaganda tinha algum efeito sobre a imagem a ministra, era, certamente, mais positivo do que negativo. Transferia uma frase típica de uma dondoca alienada e deslumbrada para o terreno da graça. Sei, a cada vez que a propaganda ia ao ar, o fato original era lembrado. Pergunto: Marta acha que ele será esquecido? Acredita que essa doce truculência de pedir a censura a um comercial de TV ajuda a compor a sua imagem?A reação da PeugeotAlguns leitores estão criticando com azedume a Peugeot por ter cedido a uma pressão — a que não era obrigada legalmente a se submeter, notem bem. Ao site do Clube de Criação de São Paulo, Jáder Rossetto, da agência Euro RSCG Brasil, que tem a conta do produto, mostra-se um tanto contrariado, mas deixa claro que “pedido de presidente da República não pode ser negado”. Eis aí. Não pode no Brasil. Se o famigerado Jorjibúxi das esquerdas se metesse numa propaganda de TV nos Estados Unidos, levaria da empresa e da agência um sonoro “Sai pra lá; meta-se com a sua vida”.Acreditem: há no Brasil um regime econômico muito parecido com o capitalismo, mas capitalismo não é. Sim, senhores: as empresas, por aqui, têm enorme dificuldade — receio, medo mesmo — de dizer “não” ao presidente da República, ao governo. Ou vocês já se esqueceram que a Volks recriou o Fusca em 1993 só porque o então presidente Itamar Franco acordou invocado e cismou que era uma boa idéia relançar o carro? Em 1996, o Fusca morreu pela segunda vez. E por que tanto medo? Porque o estado é gigante e tudo pode.Um país de JecasO que é estúpido nessa história é que a frase infeliz de Marta não foi censurada por Lula ou pelo governo. No máximo, ela soltou uma notinha se desculpando. Quem acabou arcando com as conseqüência da imprudência da ministra do Turismo foram a Peugeot, a agência, a liberdade de expressão e o bom humor. Neste ponto, alguns dirão: “A liberdade de expressão não foi atingida; o presidente fez um simples pedido. A Peugeot atende se quiser”. Conversa para boi dormir. Se Marta se sentiu agravada, que recorresse à Justiça. Ainda que a decisão fosse igualmente equivocada, ao menos se teria seguido o ritual do estado de direito. Não! Em vez disso, opta-se pela carteirada, pela pressão da “otoridade”.Qual é a diferença entre a “ministra” da Peugeot e a Marta Suplichique do humorista Marcelo Madureira, de Casseta & Planeta? Aliás, a criação da agência estava mais para a graça de Madureira do que para a truculência frívola da personagem original. O humor pelo humor é moralmente superior ao humor que vende automóveis? Por quê? Digo mais: a Suplichique de Casseta é, necessariamente, uma crítica. O ator carrega nas tintas, digamos, um tanto soberbas de Marta; a da Peugeot era só engraçada: emprestava à ministra uma graça que ela não tem.Acontece que estamos nos tornando um país de Jecas, de gente dodói, que reclama de tudo, que se sente ofendida por qualquer coisa, que sai logo gritando, reivindicando direitos, acusando discriminações. A própria Peugeot teve de tirar do ar uma outra propaganda em que um sujeito tenta, inutilmente, subir uma ladeira com um carro velho. Ele e a namorada vão se livrando das tranqueiras para deixar o veículo mais leve. E nada. Até que sobra apenas a... sogra. Pronto! Tornou-se incorreto até fazer piada de sogra. Será preciso banir a língua-de-sogra dos aniversários de criança. No Carnaval, quando começar a marchinha “Trocaram o coração da minha sogra/ puseram o coração de um jacaré...”, você pára de dançar e sai do salão em sinal de protesto.Logo, alguém vai propor uma Lei Falcão para a publicidade. Mostra-se o produto (em preto e branco, para não excitar o espírito consumista), informa-se a sua finalidade, expõem-se as características do produto (texto previamente revisado pelo Comissariado Contra o Consumismo) e se informa o preço. Tudo muito sóbrio. Tenham a santa paciência. Já se apelou até a um sósia do papa para vender mercadoria. A Igreja Católica pode não ter gostado. Aliás, eu, como católico, não gostei: achei fútil, banal, de mau gosto. E daí? Eu que proteste onde achar conveniente. Vocês sabem: procuro dizer da maneira mais inequívoca e menos ambígua possível o que penso; sempre que possível, evito os tons de cinza — não partilho da idéia idiota de que a verdade está no meio (não está). Mas não tento calar o outro.NeocensuraA verdade bastante incômoda é que estamos vivendo tempos que flertam com a censura, agora considerada uma variante da democracia. Volto ao ponto inicial: o PT é um partido hostil à liberdade alheia. Quando não busca enrijecer os mecanismos de estado para limitar a liberdade de expressão, recorre a expedientes como o que se expõe aqui. O partido quis expulsar um jornalista estrangeiro por suposta ofensa ao presidente da República. Naufragou. Quis criar o Conselho Federal de Jornalismo. Naufragou. Quis impor uma bula à Ancinav. Naufragou. Quis recriar a censura prévia no Brasil. Naufragou. Quer agora criar uma certa TV Pública que tem a única finalidade de cantar as glórias do demiurgo. Tomara que naufrague também — ah, claro, não custa lembrar: premia os veículos bem-comportados ou alinhados com publicidade oficial. Até o jornaleco do MR-8 já recebeu anúncios da Receita Federal e da Caixa Econômica. Há uma certa revista semanal que ninguém lê, quase clandestina, como aquelas cartilhas de Luiz Gushiken, que vive de propaganda de estatais e do governo.O leitor poderá dizer: “Bem, tantos naufrágios indicam, então, que não corremos riscos”. Errado. Nenhuma dessas iniciativas foi irrelevante. A cada uma, a liberdade se retraiu um pouco. Até porque, como lembrou muito bem José Dirceu em recente seminário na CUT, uma parte da imprensa, hoje, está com Lula. Vocês acham o quê? Os publicitários, a partir desta segunda, tendem a evitar referências a figuras do mundo político. Quando o PT, no auge do escândalo do dossiê, saiu gritando que estava em curso um “golpe da imprensa”, é claro que sabia se tratar de uma mentira deslavada, primitiva até. Mas contava com a reação que, de fato, se verificou: muitos veículos passaram a se policiar mais, a se questionar se não estavam mesmo exagerando, a se esforçar para deixar claro que não se tratava de uma campanha contra Lula. O PT é mestre em empurrar quem tem razão para uma posição de defesa. E como faz isso? Atacando sempre, especialmente quando está errado.
Batuque na cozinha
Só pra encerrar a crônica destes dias: num texto sobre a festa do Pan, afirmei, um tanto galhofeiro, que a variedade de instrumentos de percussão numa cultura é inversamente proporcional à civilização. Pronto! Foi um deus-nos-acuda. Se tentassem provar a minha ignorância musical, até antropológica (“Mas o que é civilização para você, Reinaldo?), talvez eu esperneasse, mas o capeta não baixaria em mim. Agora não venham me dizer o famoso “Você não pode escrever isso”. Não posso por quê? Já escrevi. E escrevo de novo: a variedade de batuques num país costuma ser inversamente proporcional ao respeito aos direitos individuais. O máximo que se pode debater aqui é o seguinte: alguém dá exemplo de uma sociedade cheia de batuques e direitos individuais, e eu tento desqualificá-lo. O meu direito de escrever isso só pode estar em questão numa ditadura. Será que é preciso desenhar?
Por Reinaldo Azevedo

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