Thursday, August 07, 2008

As MPs e o choro dos congressistas - Site www.e-agora.org.br - 07/08/08

Rolf Kuntz, O Estado de S. Paulo
(07/08/08)


http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080807/not_imp219001,0.php

Não adianta reclamar e choramingar. Os congressistas podem facilmente eliminar o excesso de medidas provisórias (MPs) e conter os abusos do Executivo. Se quiserem, podem limpar a pauta em pouco tempo e eliminar os obstáculos à votação de matérias de peso, como a reforma tributária e a proposta de lei do orçamento. Isso será especialmente importante neste semestre, quando senadores e deputados gastarão boa parte de seu tempo com as eleições municipais. O Congresso tem o poder de recusar qualquer MP editada fora das normas. Sempre teve esse poder, conferido pela Constituição, mas nunca foi capaz de usá-lo como deveria. Seria uma bela novidade se o usasse, agora, para devolver a MP 437, um trambolho assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para criação do Ministério da Pesca.

A conversão da Secretaria da Pesca em ministério não se enquadra em nenhuma das condições previstas para a edição de MPs. Não é um "caso de relevância e urgência" - requisito imposto pelo artigo 62 da Constituição Federal.

Por isso mesmo, sua criação também não poderia envolver a abertura de crédito extraordinário, só permitida "para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública". Se há algo calamitoso, nesse caso, é a decisão de transformar em ministério uma secretaria inútil, com a criação de 260 cargos em comissão.

O presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia, classificou como acinte a MP da Pesca. Outros parlamentares também criticaram a iniciativa do presidente da República e denunciaram, mais uma vez, o trancamento da pauta da Câmara. Já há três MPs na fila e mais quatro em breve também poderão emperrar as atividades.

Mas a culpa não é só do Executivo. Nessa matéria, o presidente da República só comete abusos porque não encontra resistência para valer. Pode ouvir muita reclamação, mas isso não basta para impedir a reincidência.

Os parlamentares contribuem duplamente para facilitar os abusos presidenciais. Em primeiro lugar, permitem a tramitação de MPs fora das normas. Pela Constituição, "a deliberação de cada uma das Casas do Congresso Nacional dependerá de juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais". Tem faltado, regularmente, essa filtragem preliminar. Sem essa barreira, os abusos multiplicaram-se, previsivelmente.

Em segundo lugar, os parlamentares têm raramente votado as MPs num prazo razoável. Mesmo aquelas necessárias à formalização do Plano Real foram votadas com muito atraso. Durante anos, MPs com prazo vencido foram renovadas. Em 2001, a Emenda Constitucional nº 32 fixou o prazo de 45 dias para votação. Passado esse prazo, entraria em vigor o regime de urgência e todas as demais votações ficariam suspensas.

Esse quadro revela três fatos teratológicos: 1) os congressistas têm renunciado regularmente à prerrogativa de filtrar as MPs enviadas pelo Executivo; 2) ao aceitar as MPs, os parlamentares implicitamente admitem a urgência e a relevância da matéria, mas em seguida passam a agir como se o assunto não fosse nem relevante nem urgente. Isso facilita a acumulação de MPs não votadas; e 3) a Emenda Constitucional nº 32 foi aprovada, como toda emenda, por um processo complicado. As normas por ela estabelecidas foram consideradas, portanto, razoáveis e necessárias pela maioria dos deputados e senadores. Nesse caso, por que reclamam do trancamento da pauta?

Falta seriedade tanto na discussão do assunto quanto no tratamento das MPs a partir de sua chegada ao Congresso. Os congressistas, no entanto, têm conseguido jogar a maior parte da culpa no Executivo e aparecer como vítimas perante a opinião pública. Até jornalistas políticos veteranos têm entrado nessa conversa, sem levar em conta um fato claríssimo: um ditador poderá fechar um Parlamento pela força, mas só poderá desmoralizá-lo com ajuda dos parlamentares.

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, em abril, o ministro Gilmar Mendes defendeu a adoção de um modelo de MPs mais adequado ao uso racional desse instrumento, para permitir "tanto a condução ágil e eficiente dos governos quanto a atuação independente dos legisladores". Não seria melhor defender, simplesmente, a obediência à Constituição? No Brasil, a solução para o descumprimento de uma lei é a elaboração de outra lei. Só se criou a Lei Maria da Penha porque a Justiça falhou e deixou um sujeito espancar e tentar matar sua mulher.

Rolf Kuntz é jornalista

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